"Angola Ano Zero": Documentário sobre identidade angolana no festival de Cannes
15 de maio de 2014"Angola Ano Zero" começa com uma melancólica música cubana de Frank Delgado, chamada Veterano, que fala de uma Angola estranha, melancólica vista da perspetiva de um veterano de guerra cubano que vai lutar para Angola.
Essa Angola, da televisão cubana, era um pouco a Angola de Ever Miranda, o realizador de "Angola Ano Zero", que se mudou de Cuba para Angola com 23 anos para trabalhar.
A partir desta quinta-feira (15.05) "Angola Ano Zero" pode ser visto no Festival de Cinema de Cannes. O filme foi nomeado para a seleção do Short Film Corner de Cannes, algo que deixa Miranda muito feliz: "Eu apostei nisso [Short Film Corner], eu sabia que aí ia entrar e então entrou e vamos promover [o filme]. É para promoção sobretudo, vamos encontrar novos mercados para comercializar o filme".
Tudo isto não impede algum entusiasmo, diz Miranda: "É a primeira vez que vou a Cannes, estou muito contente e claro que a minha esperança é encontrar novos caminhos, meios de comercialização para o documentário".
Cinema em Angola
Descrito por Miranda como um "filme independente", Ngoi Salucombo, produtor e director de fotografia do filme, nem sequer sabe qual foi o seu orçamento: o material e meios foram facilitados pelas empresas em que Miranda e Salucombo trabalhavam e elas foram as únicas investidoras no filme.
Miranda diz que a produção cinematográfica em Angola é muito difícil: além de existirem poucos ou nenhuns investidores e pouco material, as pessoas não estão habituadas a câmaras.
"Angola é muito difícil, é um dos países mais difíceis para filmar" diz Miranda. "As pessoas fogem da câmara, não gostam da câmara, mesmo na rua. Foi muito difícil. Para os comprometer a falarem no documentário foi realmente muito difícil porque Angola continua a ser um país de contradições, o país que está em formação, em que as pessoas temem falar abertamente. Ainda está nesse processo de democratização".
Amizade na base do filme
Mas Ngoi Salucombo também não é exatamente um produtor cinematográfico no sentido clássico da palavra: trabalha como redator publicitário e foi assim que conheceu Ever. E foi assim que nasceu "Angola Ano Zero" : "à volta de uma mesa de jantar de amigos. Foi também a amizade que fez com que o filme acontecesse", diz Miranda.
"As pessoas que ficaram [como personagens no filme] satisfeitas, ficamos amigos. Como elas sabiam que os nossos meios não eram muitos, os amigos, no final decidiram financiar a sua parte. Nós tivemos um chef de cozinha, por exemplo, que fomos ao hotel e ele preparou a comida para os câmaras, para os técnicos - foi muito bom. Foi realmente um sentimento de solidariedade".
Ou seja, as pessoas que apareceram no filme ajudaram com transporte, alimentação, e muitas outras tarefas normalmente dos bastidores do cinema.
O regresso a Angola
O filme tem seis personagens: Luaty Beirão e o seu irmão, Pedro Beirão, Lisa Videira, Daniel Nascimento, Octávio Neto e o General Rui de Sá, também conhecido como Dibala. Todas as personagens são nomes influentes ou conhecidos em Angola mas tem apenas algo em comum, como explica Salucombo.
"Nós convidamos personagens que viveram fora - todas as personagens viveram fora - e que, de alguma forma, quando regressaram ao país, tinham "seguidores". Ou seja, personagens, jovens que dentro do seu mundo acabavam por influenciar. Isso acabou por chocar por causa da questão da identidade: quem saiu e quem não saiu, ou se pelo facto de teres saído és melhor".
Muito do filme foca-se no regresso após viver fora e na vida depois disso. Como é voltar a Angola depois de viver fora, como é que as pessoas vêem ou reagem a opiniões ou perspectivas diferentes - e o que é se traz ao país.
Miranda diz que foi difícil, porque "muitos deles não são amigos, infelizmente para mim". Mas foram também e mais uma vez as diferenças que tornaram o documentário único.
"Eles tem ideias e conceções da nova Angola, da criação dessa identidade de outra forma. Foi realmente muito contraditório mas como tudo o que é contraditório, no final foi muito rico juntar as suas opiniões desse processo de identidade."
Identidade angolana
O documentário contou também com a preciosa ajuda do Dr. Américo Kwononoka, diretor do Museu de Antropologia de Luanda, que ajuda a dar forma ao tema do filme.
"Quando falamos de identidade nacional, estamos a referir a identidade de todo um povo que é caraterizado por diferentes elementos como por exemplo, o próprio território, a língua, a culinária... e acima de tudo a auto-consciência nacional. Angola é um pais multietnico, multilinguístico e multicultural. Há uma co-penetração de culturas que fazem com que nós formemos a nação", diz o Dr. Kwononoka.
No documentário, esta definição do Dr. Kwononoka está acompanhada de várias imagens desde quando Angola era um território Bantu e parte do Congo, passando pela ocupação portuguesa, pela guerra colonial até hoje. Salucombo diz que esta questão - a questão da identidade - não é algo novo.
"Este debate da diáspora e da identidade não começou hoje. Por isso no documentário entrevistamos duas pessoas, uma delas um general. Na luta do tempo colonial, uma boa parte dela que foi feita a partir da diáspora - ou seja, já existia naquela altura esse tabu".
A novidade do documentário foi falar abertamente sobre o assunto – e a receção que ele teve. Para mostrar que "Angola Ano Zero" era diferente, os seus criadores fizeram uma apresentação diferente, como explica Salucombo, responsável pelo evento.
"Quando nós terminamos o trabalho, a ideia foi sempre essa: nós queríamos apresentar o documentário numa sala de cinema, numa das salas antigas de cinema. Foi numa rua, num cinema chamado Karl Marx - uma sala que na verdade está fechada. Então fomos pedir autorizações, usamos a fachada principal do cinema, que é a entrada principal, montamos uma tela enorme e as pessoas ficaram sentadas na estrada. A polícia fechou a estrada e as pessoas na verdade estiveram sentadas em frente a um cinema. Nos convites que enviámos às pessoas não dissemos a ninguém que o filme seria projetado fora".
Foi nessa apresentação que se iniciou um debate aberto e sincero sobre o que é a identidade angolana.
"No dia da apresentação aconteceu algo muito interessante: as pessoas estavam dispostas a debater, as pessoas queriam falar. Então houve um debate ali", diz Salucombo.
Mas Miranda e Salucombo não queriam que o debate ficasse preso a um evento. E por isso, levaram-no ao país, diz o realizador.
"Tudo isto foi para chamar a atenção. Depois marcamos encontros com todas as universidades [do país]. Acho que na história do cinema angolano, se me permito dizer, nunca [antes] o cinema chegou nas universidades, sobretudo para debater abertamente com os jovens. Para que nos dissessem o que achavam e debater sobre os conceitos que se falam no documentário, que além da identidade, toca o colonialismo, toca a política, toca a economia, toca o problema de corrupção do pais, o problema econômico, etc.
E a receção por parte das autoridades?
"Para o governo é bom, para os políticos angolanos é muito bom porque faz promoção do país. Mas não é fazer a propaganda. Então simplesmente, os meios de propaganda do país nos fecham as portas. Tipo, vocês não fazem propaganda, portanto nós não estamos interessados em difundir o seu material, simplesmente", diz Miranda.
Acima de tudo, Angola Ano Zero parece-me também uma carta de amor a Angola. Durante a nossa entrevista, Miranda disse que a sua família de coração está no país e falou várias vezes daquilo que o fascina em Angola: a velocidade, o ritmo de Luanda, as cores, os sons, os cheiros. Um amor em exibição agora também em Cannes.