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Sociedade "bipolarizada" na questão das autarquias, diz ONG

23 de outubro de 2018

De passagem por Berlim, Júlio Candeiro, da ONG Mosaiko, diz esperar que as recentes detenções em Angola representem uma "nova postura" do governo. Caso Manuel Vicente servirá de "prova ao sistema judicial", diz.

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Julio Goncalves Candeiro
Júlio Gonçalves Candeiro, da organização não-governamental MosaikoFoto: DW/N. Issufo

No seu discurso sobre o Estado da Nação, há uma semana, o Presidente angolano João Lourenço afirmou, entre outros temas, que há espaço para a redução do período de implementação das autarquias locais em Angola. O chefe de Estado explicou que persiste a falta de consenso em relação à sua implementação, havendo os que "defendem uma implementação faseada ao longo de 15 anos e os que desejam que a votação seja realizada em simultânea em todos os municípios".

Entretanto, esta segunda-feira (22.10), na réplica ao discurso do Presidente João Lourenço sobre o Estado da Nação, o presidente da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), Isaías Samakuva, voltou a defender autarquias em todos os municípios. "Não pode haver autarquias para uns hoje e para outros amanhã nem pode haver eleições autárquicas para uns hoje e para outros daqui a cinco e dez anos", disse.

Angola Luanda Nationalversammlung
Assembleia Nacional de AngolaFoto: Getty Images/AFP/A. Jocard

Numa entrevista à DW África, em Berlim, onde participou num encontro que teve como tema "Terra, segurança alimentar e direitos humanos em Angola", Júlio Gonçalves Candeiro, da organização não-governamental (ONG) Mosaiko - Instituto para a Cidadania, fez uma avaliação ao discurso de João Lourenço, afirmando que, no que toca ao tema das autarquias, a falta de diálogo é crítica, estando a sociedade angolana muito "bipolarizada". Júlio Gonçalves Candeiro saudou a cruzada do governo contra a corrupção, frisando que esta luta deve "respeitar a lei" e não permitir que haja "ninguém acima" desta.

DW África: No discurso sobre o Estado da Nação, João Lourenço disse que as eleições autárquicas, em todo o país, acontecerão em dez anos. A novidade é um golpe para os que anseiam por uma descentralização do poder?

Júlio Gonçalves Candeiro (JGC): O que eu esperava é que o Presidente fosse capaz de levar o seu partido a um maior diálogo com a sociedade. À volta deste assunto, a sociedade anda muito bipolarizada, entre os que defendem a institucionalização imediata sem gradualismo geográfico, portanto, em todos os municípios do país, e os que por outro lado, defendem a implementação gradual das autarquias, que me parece até agora a posição do partido maioritário. Embora o próprio Presidente tenha admitido que era apenas uma proposta. Portanto, há uma proposta de lei que foi apresentada pelo MPLA, que foi projeto de auscultação, e há trabalho de organizações da sociedade civil que trazem também outras questões das comunidades que a proposta de lei não reúne. E reconhecer que há falta de diálogo. Tanto os que defendem uma posição como outra parecem surdos às opiniões dos outros e temos outras questões mais importantes sobre as autarquias a discutir para garantir que, quando forem implementadas, seja lá em que moldes for, não tenhamos recuos, não deixemos de parte questões estruturantes que comprometem a vida das comunidades.

DW África: Angola é um dos maiores devedores da China em África. E, recentemente, o Presidente João Lourenço esteve na China onde obteve mais um empréstimo. Como é que a sociedade civil olha para este crescente endividamento do país?

Angola: Falta diálogo do governo com a sociedade acerca das autarquias

JGC: Com bastante preocupação. A maior parte do nosso orçamento está ao serviço da dívida. Reconhecemos que o governo está a dizer que vai lutar contra a corrupção e esperemos que o faça e o faça de forma estratégica, de forma a respeitar a lei, de forma inclusiva e de modo a que ninguém esteja acima da lei. Nós, como organização da sociedade civil, queremos ver até que ponto haverá mudanças na forma de gestão porque é tudo uma questão de atitude do Estado em relação à ideia de que ele, o governo, é o gestor do bem público do Estado, que somos todos nós. Não sabemos os termos das negociações [com a China], não sabemos qual será o compromisso da própria China em fiscalizar mais o dinheiro que põe [em Angola], embora o mais importante é recuperar o seu dinheiro. Esperamos que o governo tenha uma maior capacidade de gestão e a China, e outros credores de Angola, olhem também para o lado da sua imagem que fica suja. Acho que a China ganha dinheiro, mas também ganha uma má fama como credor, como investidor, como parceiro. Espero que a China ao conceder este novo empréstimo a Angola tenha feito uma chamada de atenção neste aspeto, não tanto pelas questões democráticas, mas de transparência de prestação de contas. Por isso, estamos comprometidos em monitorizar o orçamento para como o dinheiro público é alocado e vamos trabalhar e fazer pressão para que no próximo ano o Estado apresente as contas públicas e nós vejamos como cada centavo do orçamento do Estado foi gasto. 

DW África: As recentes detenções polémicas de altos quadros do MPLA e do filho do ex-Presidente, José Filomeno dos Santos, visam credibilizar o sistema de justiça do país?

JGC: Não sei se visam credibilizar, mas penso que se inscreve na luta contra a corrupção. Para nós ainda é algo que espanta, que admira, e vamos fazer fé que isto seja algo estruturante e que seja uma nova postura do próprio sistema de justiça, e não apenas uma forma de seguir o ritmo, digamos assim, que foi lançado pelo próprio Presidente. Muitos acórdãos, muitos atos de inconstitucionalidade foram praticados por gente que ainda faz parte do sistema judiciário.

DW África: O caso Manuel Vicente seria uma espécie de contra-senso quando se fala desta iniciativa de credibilização do sistema de justiça?

JGC: O mais importante é que este sistema não seja nem pareça uma perseguição a A ou B. Que seja uma decisão, uma vontade de todo o país de ir atrás de práticas que lesam e lesaram Angola. Portanto, quem deve, tem que pagar. E isto aplica-se a quem tirou milhões, como se aplicou, infelizmente, a quem tirou muito pouco. O caso Manuel Vicente é um caso que, na minha opinião, vai servir de prova ao sistema de justiça. Aguardamos com atenção qual será a postura da justiça face a todas as pessoas que forem indiciadas num crime, seja ele qual for. Portanto, Manuel Vicente não deve estar excluído disso se ele for indiciado por ação criminosa.

Nádia Issufo
Nádia Issufo Jornalista da DW África