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"As manifestações em Angola têm um efeito mais corrosivo sobre o regime do que no Egito", analisa Rafael Marques

Johannes Beck4 de julho de 2014

O jornalista angolano Rafael Marques fala sobre os efeitos da "primavera árabe" em Angola. "Tem hoje uma geração de indivíduos que estão dispostos a servir de saco de pancadaria para fazerem valer um ideal", diz ele.

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Manifestação na Praça Tahrir no Cairo em janeiro de 2013Foto: Mohammed Abed/AFP/Getty Images

No início de 2011, uma onda de manifestações abalou os governos no norte de África. Na Tunísia caiu a ditadura, no Egito houve eleições livres e em Marrocos a monarquia passou a ser mais democrática. Revoluções e reformas que inspiraram também outros países africanos como Angola, onde no dia 7 de março de 2011 nasceu um movimento de manifestações contra o regime do Presidente José Eduardo dos Santos e o partido no Governo, o MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola.

Até que ponto a "primavera árabe" teve efeitos na África Subsaariana? Este foi um dos temas debatidos no Global Media Forum de 2014, durante esta semana na cidade de Bona, Alemanha. Entre os presentes no fórum esteve o jornalista angolano Rafael Marques.

DW África: Por que é que as pessoas aderiram logo a este movimento dos países árabes?

Rafael Marques (RM): Existem laços históricos entre Angola e o norte de África muito fortes, porque as principais bases do MPLA e dos movimentos de libertação angolanos estavam na Argélia, no Egito e em Marrocos, que prestaram um grande apoio. Então há uma tradição de envolvimento do norte de África na política angolana. Desta vez, em 2011, tratou-se da juventude a inspirar-se em métodos pacíficos de fazer a revolução e de tentar mudar o curso da história nos seus países de forma pacífica.

DW África: Como é possível que esta geração mudou tanto de ideias e que vai pela primeira vez na história de Angola à rua para protestar contra o regime do Presidente José Eduardo dos Santos?

Rafael Marques
Rafael Marques (no meio) fundou o portal Maka Angola de luta anti-corrupçãoFoto: DW/J. Beck

RM: Primeiro, é uma geração que tem uma fraca memória do que foi a guerra. É uma geração que tem maiores exigências em termos de educação, em termos de emprego e em termos de melhoria das condições de vida, não só ao nível pessoal como ao nível da própria sociedade. Sentem que chegou a sua altura de fazerem algo pelo país. E essa altura começa precisamente por lutarem pela mudança das práticas do atual regime, que estão encapsuladas na figura do Presidente da República que detém o poder absoluto em Angola.

Para dar um exemplo: a última manifestação, ou tentativa de manifestação, teve lugar a 27 de maio [de 2014] e foi brutalmente reprimida pela Polícia de Intervenção Rápida. Mais de 20 jovens foram torturados e abandonados fora da cidade de Luanda.

Há aqui um aspeto importante: o nível de coragem e bravura destes jovens é o que conta fundamentalmente. Não é a capacidade de organização ou de mobilização, mas é o facto de nós termos hoje uma geração de indivíduos disposta a servir de saco de pancadaria para fazerem valer um ideal. O ideal de que como cidadãos angolanos conscientes tem o direito e o dever de reclamar pelos seus direitos constitucionais. Porque a Constituição angolana garante o direito à manifestação. Este é um direito que o Governo recusa-se determinantemente a proteger e a garantir que seja exercido pela população.

Angola - Demonstration in Benguela
Manifestação em Benguela em novembro de 2013Foto: DW/N. Sul d´Angola

DW África: Até que ponto as manifestações – primeiro na Tunísia e depois no Egito – foram determinantes para começar esta onda de protestos em Angola que até agora ainda não terminou?

RM: Foram a inspiração! Devo dizer que conheço o jovem que publicou o primeiro anúncio de manifestação logo a seguir a revolução egípcia. Ele fê-lo a brincar a partir do exterior. Mas o pânico que causou no seio das forças governamentais levou a que os governantes emitissem múltiplos comunicados e que fizessem uma contra-manifestação envolvendo mais de 100.000 pessoas para lutar contra uma ideia, que na verdade era uma brincadeira.

Para mim, isso mostrou mais como a juventude pode ser extremamente criativa. Mostrou também a fragilidade de um regime que tremeu diante de um anúncio de uma manifestação que foi feita simplesmente como brincadeira. Este jovem estava a estudar comunicação e teorias de comunicação. Ele pensou de forma subversiva: “Vou fazer isto como um trabalho de campo.”

DW África: Depois houve manifestações em Angola e muita repressão por parte das autoridades. Mas uma coisa que diferencia Angola em relação a países como o Egito e a Tunísia foi a falta da adesão de massas. Em Luanda, nunca houve manifestações de milhões como aconteceu por exemplo no Cairo. Porque não aconteceu este segundo passo depois das primeiras manifestações em Angola?

RM: Vou explicar. Quando se iniciaram os protestos na Tunísia, eu estava no Senegal. E comigo esteve uma jovem escritora tunisina, que dizia sempre: “Nós estamos a fazer a revolução e eu sou o contato com o Ocidente.” Era um grupo de escritores que estava ali em estado sabático e todos nós gozávamos com ela. Quando cheguei a Luanda, liguei a CNN e vi que havia uma revolução na Tunísia. Ela estava muito comprometida com a ideia da organização daquela revolução.

Rafael Marques
Rafael Marques acha que o nível de organização do movimento em Angola ainda é mais baixo do que nos países árabesFoto: DW/J. Beck

O que falta em Angola? Em Angola, falta organização, a coragem e a bravura. Faltam elementos catalisadores que possam juntar setores da sociedade que durante muitos anos foram fragmentados.

Outro aspeto importante é que a população do Egito uniu-se contra um regime. Em Angola, durante esses anos todos de guerra, a política principal de governação foi a de dividir a sociedade, de fragmentá-la completamente e hoje a sociedade está muito fragmentada.

Começa a haver com estes pequenos gestos uma maior congregação de esforços. Vou dar um exemplo: nesta última manifestação houve uma disputa entre os jovens – e estou a revelar isto aqui em primeira mão. O grupo que inicialmente convocou a manifestação não apareceu, porque havia conflitos. Todos queriam fazer a manifestação, mas não queriam fazer juntos.

Quando uns foram espancados, os outros vieram em seu socorro e prestaram solidariedade como se fossem todos do mesmo grupo e estivessem unidos. Então, a brutalidade governamental uniu-os. É uma consciência, que está a despertar agora, para ultrapassar os anos de guerra e a fragmentação política que foi ocorrendo na sociedade angolana sobretudo pelo poder da corrupção.

Angola - Demonstration in Benguela
Os manifestantes querem o afastamento do Presidente angolano José Eduardo dos SantosFoto: DW/N. Sul d´Angola

DW África: O poder da corrupção talvez seja na realidade angolana um poder de petróleo. Há muito mais dinheiro em Angola que está teoricamente disponível para ser distribuído à população, ou pelo menos a setores chaves da população, do que por exemplo no Egito. Muitos analistas dizem que um dos fatores principais para a grande adesão aos protestos no Egito e na Tunísia foi a frustração económica dos jovens. Eles viveram durante muitos anos que desemprego e a falta de perspetivas. Será que em Angola falta este lado económico para desencadear uma onda maior de protestos?

RM: Tocou numa questão fundamental. Sempre que ocorra este tipo de protestos, para além da repressão as entidades governamentais oferecem outro tipo de possibilidade. Oferecem que estes jovens tenham acesso a bolsas de estudos, apartamentos, empregos ou dinheiro.

Houve o caso de um jovem, Mário Domingos: um ex-governador (na altura era governador) foi com ele ao banco, levantou 700.000 dólares americanos e entregou o dinheiro aos jovens. Também entregou várias viaturas e caminhões com bens. E este jovem fez algo extraordinário: pegou numa das carrinhas que recebeu do Governo e pôs a carrinha a distribuir panfletos.

Mas o que se percebeu aqui, a ideia era comprometê-lo com a corrupção, porque, no dia seguinte, os agentes da segurança apareceram na sua casa para recuperar o dinheiro.

Então, o que está a acontecer agora é o reordenamento da sociedade no sentido de ultrapassar os efeitos perversos da corrupção.

Angola Wahlen 2012 Regierungspartei MPLA Wahlkampagne
Mobilização do MPLA em Luanda na fase final da campanha para as eleições de 2012Foto: DW

DW África: Portanto, o seu prognóstico para os próximos anos é de uma intensificação dos protestos?

RM: Sim.Veja, por exemplo, a revolução no Egito: foi tão bem sucedida em termos de mobilização. Mas depois faltou a captura do poder por esses mesmos jovens, que basicamente preferiram entregá-lo aos militares. E hoje os níveis de repressão são maiores.

No caso de Angola há um processo de desgaste do próprio regime, que é muito mais lento. Mas é muito mais corrosivo e irreversível.

DW África: Portanto, quantos anos de vida ou de prazo ainda dá a este Governo?

RM: Eu não dou prazo. Primeiro, porque sou apenas um analista. Segundo, porque depende sempre de vários fatores. Se amanhã o regime decide mudar de ideias e trabalhar no sentido de servir os cidadãos, certamente terá muito mais anos de vida. Não acredito que venham a fazer isto.

De qualquer modo, o Presidente está a envelhecer. É um regime que está a chegar ao fim pelo desgaste do próprio tempo.

É um regime que não investiu na formação de novos quadros com uma política destinada a governar o país. A nova geração do MPLA é uma geração de rapina. É uma geração que está interessada no dinheiro do petróleo para enriquecimento pessoal e para o desfruto dos privilégios que esse dinheiro oferece no ocidente.

Em Angola, essas manifestações serão sempre mais lentas e não crescerão tão rapidamente. Mas o efeito corrosivo que as manifestações têm sobre o regime é muito maior do que o que aconteceu no Egito, onde se mudou o Mubarak e não se olhou para toda a infraestrutura de repressão que Mubarak tinha ali ao nível do exército e do aparelho de segurança, que hoje continuam a dar as cartas.

Rafael Marques
Rafael Marques em Bonn, durante o painel do Global Media Forum sobre a primavera árabeFoto: DW/J. Beck