Ataques racistas preocupam imigrantes africanos em Portugal
20 de agosto de 2020A Polícia Judiciária portuguesa continua a investigar as ameaças de morte feitas há cerca de duas semanas por e-mail, visando três deputadas e sete ativistas antirracistas e antifascistas: as deputadas Joacine Katar Moreira (não inscrita), Beatriz Gomes Dias e Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda) foram visadas na mensagem dirigida à SOS Racismo, além do dirigente desta associação Mamadou Ba e Jonathan Costa, da Frente Unitária Antifascista, entre dez cidadãos.
Em tom ameaçador, a mensagem da autodenominada Nova Ordem de Avis – Resistência Nacional definiu "um prazo de 48 horas para que os dirigentes antifascistas e antirracistas incluídos nessa lista renunciem às suas funções políticas e abandonem o território nacional" e levou o Ministério Público a abrir um inquérito, na sequência de queixas apresentadas junto das entidades judiciais. As ameaças, alargadas às famílias dos visados, mereceram o repúdio de grande parte da sociedade portuguesa, particularmente dos imigrantes africanos.
A ativista portuguesa Andredina Gomes Cardoso considera as manifestações de grupos extremistas o reflexo de algo que não está bem e que, depois, acaba por se manifestar das formas mais hediondas. "Muitas das vezes, as pequenas coisas que vão acontecendo no dia a dia são desvalorizadas. E o desvalorizar destas coisas depois, obviamente, leva a que aconteçam outras", afirma. "Há uma desigualdade muito grande dentro da sociedade portuguesa. Não tem a ver só com o tão falado racismo", avalia.
A cidadã de origem cabo-verdiana lembra que as movimentações de cunho racista não são novas em Portugal e, em muitos casos, são desvalorizadas. É que, até agora – acrescenta a propósito das desigualdades sociais e de oportunidade – não se encontrou uma forma eficaz de capacitar as pessoas para o seu projeto de vida, a começar pela educação. Não basta a condenação dos crimes racistas, acrescenta: "É uma realidade múltipla que tem várias vertentes e tem de ser combatida de várias formas", considera Andredina.
Mudar mentalidades
Mamadou Ba, dirigente da SOS Racismo, é um dos ativistas ameaçados de morte, pouco depois de um grupo neonazi ter realizado uma parada em frente à sede da associação com tochas e cara tapada imitando o Ku Klux Klan, movimento racista que nasceu nos Estados Unidos para defender a supremacia branca. Pela sucessão de casos de violência racista em Portugal, "torna-se impossível varrer o racismo para baixo do tapete", considerou Mamadou Ba, em entrevista ao jornal português Expresso.
Em sintonia com a reação da maioria dos portugueses, Carlos Ramos, imigrante guineense, afirma que se trata de um ato condenável a ameaça de morte às referidas deputadas, entre as quais as afrodescendentes Beatriz Dias e Joacine Moreira. "É uma situação preocupante", afirma, lembrando que a Assembleia da República já teve outros deputados de origem africana - nunca antes tão beliscados pela cor da sua pele.
"É só para ver que há aqui um problema de aproveitamento [político] ou para ganhar mais visibilidade, daí que pega nas três deputadas", considera. "Agora, o que eu continuo a dizer é o seguinte: se queremos mudar isto, temos que tomar uma posição, nós africanos lusófonos, e integrar os partidos políticos para poder fazer um combate de mudança de mentalidade". Carlos Ramos lembra que no concelho de Sintra convivem pessoas de 40 etnias, num ambiente de harmonia e de coabitação saudável.
Confiança na justiça
Referindo-se à ação do Ministério Público, Carlos Ramos acredita que há matéria suficiente para se vir a sancionar os atores das ameaças racistas.
"Existe o império da lei. A lei funciona e sempre funcionou. Eles vão ser condenados de certeza absoluta e há matéria na lei suficiente para punir essa gente toda. Penso que não é um problema da lei. É um problema de integração e de mudança de mentalidade".
Também Andredina Cardoso defende que não bastará a ação da justiça, embora "cumprindo cabalmente a sua função, terá aqui um papel significativo". Para a ativista, "a condenação destes atos, de forma clara e expressa, também obviamente ajuda a passar uma mensagem de não aceitação desta realidade".
À luz dos últimos acontecimentos, Júlio Neto, outro africano a viver na Europa, lamenta os atos da extrema direita, mas diz acreditar na justiça portuguesa: "Eu acredito na investigação portuguesa, eu acredito nos serviços judiciais e judiciários de Portugal. E acredito também na Assembleia [da República] Portuguesa. Estou convencido de que o povo português não está minimamente interessado na propagação do racismo".
Sem oportunidades, sem representação
O cidadão são-tomense realça a pouca visibilidade dos imigrantes na sociedade portuguesa e critica sobretudo o racismo institucional que nega oportunidades e direitos a cidadãos afrodescendentes, muitos deles nascidos em Portugal.
"Eu não vejo por que [razão] as instituições continuam a contribuir para perpetuar as desigualdades, se quisermos dizer a verdade e assumi-las como elas são", afirma. "Os imigrantes permanecem sem oportunidades. Ou, se elas existem, elas são ínfimas. Temos que começar a atingir as instituições, começar a desmembrá-las e torná-las mais abertas, mais coesas, com diferentes opiniões", diz.
Olhando para os casos das deputadas Joacine Moreira e Beatriz Gomes, o cidadão são-tomense critica ainda a ínfima representatividade política de imigrantes nas estruturas de poder, nomeadamente os oriundos das antigas colónias portuguesas, bem como a ínfima representação de negros ou afrodescendentes nas estruturas da comunicação social portuguesa. "Eu pergunto, não será esta uma forma de promover também o racismo? É", avalia.
"Tolerância zero"
Júlio Neto conclui que é necessário "trabalharmos todos juntos". A Presidência da República, o Parlamento, o Governo, as instituições estatais, não estatais e paraestatais, as forças de segurança e organizações não-governamentais devem contribuir para uma efetiva integração. "Tudo isso", acrescenta, tem de passar por uma única palavra: a educação, como meio para reduzir os índices de desigualdade que levam à discriminação. "Tem de se perpetuar a educação como uma forma de combate ao racismo", insiste.
Reagindo aos últimos acontecimentos, o Presidente de Portugal pediu "tolerância zero" para ameaças racistas e para aquilo que disse ser condenado pela Constituição. Marcelo Rebelo de Sousa apelou ao bom senso no tratamento de matérias desta natureza e pediu igualmente inteligência na resposta a este tipo de atos que visam criar um clima de clivagem na sociedade portuguesa. Nos últimos anos, houve várias queixas por discriminação racial junto da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, além de centenas de casos de racismo que levaram as vítimas a apresentar queixas nos tribunais, sem qualquer condenação criminal.