Aumento do turismo em Lisboa transforma bairros históricos
13 de abril de 2017O aumento do turismo na cidade de Lisboa tem levado a que vários bairros históricos da cidade estejam a sofrer profundas transformações, fruto do contínuo incremento da procura imobiliária.
Também pela sua história, bairros típicos como Alfama e Mouraria são os preferidos dos estrangeiros, que procuram adquirir prédios para habitar ou converter em residenciais e hotéis. Este fenómeno tem levado muitos habitantes locais, sem capacidade financeira para pagar rendas elevadas, a deixar os apartamentos e a encontrar alternativas fora da cidade, o que faz com que, em alguns destes bairros, comece a desaparecer o comércio tradicional.
Quem passeia por Lisboa depara-se em vários quarteirões com obras de construção ou de restauração de prédios antigos. Alguns em estado de degradação e outros forçosamente deixados pelos moradores depois de vendidos pelos proprietários. A transformação do complexo urbanístico da cidade é bem visível em bairros típicos como Alfama, Mouraria e Bairro Alto.
À DW África, alguns moradores mostraram-se a favor da recuperação dos edifícios degradados. Discordam, no entanto, da forma como os bairros estão a ser transformados por causa dos turistas estrangeiros.
Mouraria: um dos bairros em transformação
A viver na Mouraria há 28 anos, João Daniel, natural de Angola, sente-se bem enquadrado no ambiente caloroso que encontrou no bairro, onde moram muitos africanos. A Rua de São Pedro Mártir é um dos pontos de concentração destes imigrantes. À DW África, João Daniel conta que a Mouraria mudou bastante. "Quando eu cheguei, a Praça do Socorro, por exemplo, tinha terra batida. Tinha umas barracas. Mesmo este Centro Comercial não existia. O aparecimento dos indianos também trouxe diferenças", constata. "O bairro mudou muito".
O angolano mora num apartamento alugado. Não faz parte do grupo de inquilinos que tiveram de deixar a casa por força da procura imobiliária que se faz sentir nos bairros históricos de Lisboa, mas tem testemunhado algumas dessas situações. "Há muitos prédios que já foram [destruídos] porque estavam um pouco degradados. Como os senhorios não tinham dinheiro para fazer obras, preferiram vender para depois darem uma indemnização aos inquilinos, o que é mau porque muita gente que nasceu aqui no bairro vê-se obrigado a ir para outros lados, a adaptar-se a outra realidade", afirma.
Apesar de não ter sido até à data uma das vítimas da especulação imobiliária, este angolano acredita que, "mais tarde ou mais cedo" terá de deixar a casa onde mora. "Os franceses é que estão a comprar estes prédios quase todos. Estão a transformá-los em hostels. A procura do turismo é maior. É mau para o bairro, mas, olha, é a realidade que se vive hoje", lamenta.
De bar a apartamento turístico
Descendo as escadas em direção ao Centro Comercial da Mouraria, seguimos a Rua dos Cavaleiros pela linha do elétrico 12 até ao Largo Terreirinho, passando por estabelecimentos de comércio agora dominado por indianos, paquistaneses, nepaleses e chineses.
À nossa frente fica o edifício onde funcionou o Bar Anos 60, entretanto alvo de uma remodelação. É o que conta um dos serventes da obra. "Já estava muito antigo, paredes e tudo. Então foi tudo comprado. O patrão comprou. É tudo apartamentos agora", afirma. Os apartamentos são para fins turísticos.
Chalo Correia cantou no bar muitas vezes. "Era uma referência", lembra o músico profissional angolano, há quase 30 anos em Portugal e que tem animado com as suas canções as noites da multicultural Mouraria. Segundo o músico, "havia muitos prédios aqui desabitados e degradados, está a dar-se aqui uma nova roupagem". O que é, a seu ver, "satisfatório e positivo". Chalo Correia gostaria, porém, que as "os habitantes se mantivessem aqui".
"Este é o espaço deles, onde eles sempre comungaram os seus costumes. Esta onda de transformação, que tira as pessoas da baixa para outros sítios onde a gente não faz ideia, é má", explica, acrescentando que esta é uma prática que tem estado a "proliferar pela cidade" fazendo com que Lisboa fique "um pouco descaracterizada".
No seu entender, o fecho de espaços como o Bar Anos 60 poderá afetar a vida cultural dos bairros. "É bom trazer turistas, mais pessoas para Lisboa, mas [era necessário] que houvesse uma política equilibrada com a cultura da cidade. Não deixar perder esta cultura que Lisboa tem, que é totalmente diferente. Penso que não devíamos fazer uma Lisboa igual a Amesterdão ou a outra coisa qualquer", conclui.
Fecha o comércio, surgem novos apartamentos e hotéis
A rua acima leva-nos ao Largo das Olarias, onde estão em curso obras de reabilitação dos edifícios, a cargo de um consórcio luso-francês.
Com casa própria na Travessa da Nazaré, Maria Angelina, de 79 anos, mora aqui há cinco décadas. Diz que nunca foi abordada por nenhuma empresa imobiliária, mas todos os dias observa com preocupação esta mudança no largo. "Estão para aí a comprar as casas todas. Ali atrás na Rua dos Lagares ou na Travessa dos Lagares já vai também outra gente embora", refere a moradora que em tempos também fez compras na pequena drogaria do nº 46, gerida há 40 anos por Eliseu Santos. O senhorio fez-lhe um contrato por cinco anos de renda e já não aceita a renovação. "Acabando o contrato vamos embora. Os senhores das obras compraram isto tudo aqui e, de maneira, estamos feitos para ir embora", lamenta.
Entre os antigos moradores, alguns idosos mudaram-se e outros foram indemnizados. Nesta rua, já não existem nem mercearias, nem talhos, nem padarias. E a drogaria tem os dias contados porque o negócio enfraqueceu, relata Eliseu Santos. "Está completamente morto, porque as pessoas pouco passam aqui. É só turistas, mais nada. Os residentes são muito poucos. De maneira que aqui estamos a viver dias difíceis, a ganhar para pagar despesas, contribuições e para a alimentação", descreve o comerciante, dando conta de que há um novo plano para o prédio onde está a loja. No largo, "vão surgir residenciais e hotéis. Sem custos com impostos", diz o inquilino Eliseu Santos, afirmando também que são os franceses os que estão a comprar a maior parte dos imóveis.
Os turistas franceses, com quem nos cruzámos no Largo das Portas do Sol, em Alfama, parecem não se aperceber deste fenómeno. À DW um deles diz estar mais interessado "na arquitetura típica, nas cores da cidade, nos pavimentos e azulejos, em conhecer melhor a gastronomia portuguesa e sentir a alma do fado" - canção popular, qualificada património mundial pela UNESCO, muito ouvida nas noites da Mouraria, do Bairro Alto e de Alfama.
Assunto também é tema nos passeios de tuk-tuk
Durante os percursos pela cidade, Almir Duarte, motorista de tuk-tuk mais conhecido por "Kim", confirma que já tem sido abordado por estrangeiros interessados em comprar imóveis em Lisboa. "Tenho inclusive clientes que vêm e começam a perguntar sobre os preços. Já há até imobiliárias a querer fazer parcerias connosco e a dizer-nos para, se surgir algum cliente interessado, lhe passarmos [os contactos]. Realmente existe uma grande procura", confirma o brasileiro que está há um ano em Portugal, mas que já faz planos para trazer a família da sua "terra natal" e fixar residência aqui.
No coração de Alfama, encontramos muitos prédios restaurados ao serviço do turismo com alojamentos a preços elevados. Mas também há edifícios ainda em obras e alguns para venda. Perto do Campo das Cebolas, vai nascer um grande hotel.
Associação Renovar Mouraria está atenta
Os velhos prédios no Beco do Rosendo, na Mouraria, também vão ser remodelados. Os inquilinos já foram intimados a sair, uma vez que o proprietário decidiu vender o prédio para fins turísticos, segundo confirmou um morador que não se quis identificar. Na mesma ruela fica a Associação Renovar Mouraria, que há cerca de quatro anos tem seguido todo este processo de transformação do bairro, em busca de novos habitantes.
Durante muito tempo, a Mouraria esteve protegida da especulação imobiliária por causa da crise em Portugal. Segundo Filipa Bolotinha, vice-presidente da associação, "nessa altura não se registava este fenómeno de saída dos mais pobres e entrada dos mais ricos para aqui viver aqui". Mas Bolotinha constata que, no último ano, houve uma "alteração brutal no acesso à habitação" neste bairro lisboeta.
"Hoje em dia, é quase impossível arrendar aqui um apartamento porque todos os que são reabilitados são quase exclusivamente para alugueres de curta duração a turistas", constata.
Na opinião de Filipa Bolotinha, "passar a ter habitantes que serão 'temporários' não é benéfico, nem para o bairro, nem para o próprio turismo".
"O que os turistas procuram em Lisboa e nestas zonas da cidade é a autenticidade, é o bairro típico, é a população. Se chegam cá e só vêem outros turistas, mais cedo ou mais tarde o próprio modelo económico por detrás da atividade vai ruir", afirma.
Para a responsável, há que ter em atenção uma série de situações à volta desta nova realidade, nomeadamente, as alterações à lei do arrendamento, que isenta os estrangeiros – os chamados residentes não permanentes – de pagar impostos quando compram casa em Portugal.
A Associação Renovar Mouraria está envolvida em grupos de trabalho que preparam um conjunto de propostas a apresentar ao Governo central e ao poder local, que prevêem minorar a situação. É preciso notar, alerta Filipa, que "embora o turismo tenha sido quase uma tábua de salvação para o município de Lisboa, este modelo em que há uma exploração de todas as atividades económicas em torno do turismo pode não ser um modelo sustentável".
"É preciso regulamentar e fiscalizar para que as coisas decorram com normalidade e se respeite quem vive nos edifícios. A taxa de turismo que a Câmara Municipal cobra pode ser investida em incentivos à habitação no centro da cidade. Portanto, há uma série de medidas simples e concretas que podem ser implementadas", defende.
Santa Maria Maior é a freguesia mais afetada
As autoridades locais admitem que a proliferação desmesurada de unidades de alojamento no centro histórico e, particularmente em Santa Maria Maior – a freguesia mais afetada de Lisboa, é preocupante e exige medidas urgentes.
Em entrevista à DW África, Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, mostra-se preocupado com a situação. "A freguesia tem bairros com pessoas fantásticas, que moram neles há muitos anos. São famílias que estão lá há mais de 100, 200 anos. Estão lá gerações que, ultimamente, têm ficado um bocado assustadas. Algumas até já estão a sofrer na pele as consequências de algum investimento errado e de políticas empresariais relacionadas com a habitação que estão a surgir na cidade e em concreto neste território, que é o mais bonito", afirma.
Defensor da autenticidade dos bairros típicos, Coelho reconhece que são necessárias medidas, a começar pela revisão da lei das rendas e por um agravamento da fiscalidade. Dando conta de que, no "quadro legislativo, as juntas de freguesia não têm nenhuma capacidade de intervenção do ponto de vista legislativo para impedir este processo", Miguel Coelho explica que o papel da junta passa assim por "proteger os nossos [residentes]".
"Temos aqui um quadro de juristas que só defende estas pessoas quando as coisas se encaminham para os tribunais e temos feito um conjunto de pressões muito grande para que o poder político ao nível central tome medidas. Por exemplo, implementar – tal como penso que já existe em Berlim – um sistema de quotização para este tipo de atividades por bairro, para que haja um equilíbrio saudável entre residentes permanentes e residentes flutuantes, que também são importantes", afirma.
Há um conjunto de medidas que devem, por isso, ser tomadas para travar este processo - "senão isto qualquer dia transforma-se numa Disneylândia e deixa de ser a verdadeira Lisboa", ironiza.
Aos olhos do presidente da junta, "o turismo é importante pelo seu impacto positivo no crescimento económico, na criação de emprego, na recuperação do edificado e no reposicionamento internacional do nome 'Lisboa'. No entanto, há que ter em mente que não se pode 'matar a galinha dos ovos de ouro'.
"Se Lisboa perder interesse, perder charme, perder encanto e se transformar numa cidade artificial, os mesmos turistas que vêm cá hoje deixam de vir", alerta.
Município entregou casas sociais a 72 famílias em 2016
Em dezembro de 2016, a Câmara Municipal de Lisboa entregou casas sociais a 72 famílias, no âmbito do Programa de Acesso à Habitação Municipal destinado a pessoas de baixa renda.
A Câmara tem co-financiado o processo de reabilitação do espaço público e apoiado projetos sociais e culturais de várias associações com vista a dar uma vida nova ao bairro.
Resta saber como serão estes bairros típicos no futuro. E se perderão ou não a sua essência.