Como Moçambique entra na era da identidade digital
6 de abril de 2021O índice Findex, do Banco Mundial – que retrata o estado da inclusão financeira no mundo – estimou, em 2017, que 40% dos moçambicanos não tinham Bilhete de Identidade (BI). Por outro lado, iniciativas junto ao setor privado devem iniciar processos massivos de identificação digital dos cidadãos nos próximos meses para diversos fins.
As empresas de telecomunicações, por exemplo, passarão a usar um sistema de identificação biométrica para cadastrar os subscritores dos cartões de telefonia móvel celular (SIM pré-pago). O projeto está a ser coordenado pelo Instituto Nacional das Comunicações de Moçambique (INCM), que é a autoridade reguladora do setor.
Atualmente, as empresas trabalham em Moçambique com os chamados "dados demográficos" (nome, filiação, endereço, data e local de nascimento) dos seus subscritores. Até julho de 2021, no entanto, as operadoras deverão estar habilitadas e equipadas para fazer o registo do rosto e da impressão digital do cliente. As informações coletadas serão enviadas ao INCM no momento do registo.
A coleta de dados biométricos para a produção de identidades digitais não parece ser uma tendência isolada do setor de telecomunicações moçambicano. O próprio BI - que é uma iniciativa estatal - possui um chip com capacidade para armazenar diversos dados biométricos.
Banco central estuda biometria
A antiga integrante do Conselho de Administração do Banco de Moçambique, Esselina Macome, identifica debates e projetos sobre a introdução da identidade digital também nos setores financeiro e de educação.
"Em Moçambique, este movimento já começou mesmo em nível de Banco Central e de outras instituições para discutir qual é a melhor maneira de identificarmos as pessoas para não serem excluídas pelo fato de não terem um registo de identidade", revela Macome, que é especialista em tecnologia da informação e professora da Universidade Eduardo Mondlane.
Os dados biométricos são a base para a identidade digital. A biometria permite individualizações através do registo de impressões digitais, da íris, da voz, de características faciais e até do sistema vascular, dos gestos comportamentais e do material genético da pessoa.
"Agrada-me o sistema indiano Aadhaar, que escolhe três aspetos biométricos básicos. Depois, se você vai à área de finanças, acrescenta o que precisa nesse setor. Se vai à saúde, acrescenta o [dado biométrico] que a saúde precisa. Se vai para a educação, acrescenta o que a educação precisa", explica Macome, que também é diretora-executiva da iniciativa de inclusão financeira FSDMoc.
O maior sistema de África
Segundo uma investigação feita em 2017 pela consultora Findex, 67% das pessoas na África subsaariana estão fora do sistema bancário. Quase 45% delas dizem que a falta de um documento de identificação representa um dos principais obstáculos para abrirem uma conta bancária ou terem acesso a crédito.
O maior banco de dados biométrico digital de África está na Nigéria e armazena dados de 47 milhões de pessoas, quase um quarto da população do país mais populoso do continente. O Número de Verificação Bancária (BVN, na sigla em inglês) utiliza informações biométricas para identificar e verificar todas as pessoas que têm contas nos bancos nigerianos.
Segundo a diretora executiva de desenvolvimento de negócios do Sistema de Pagamentos Interbancários da Nigéria (NIBSS), Christabel Onyejekwe, o BVN permite a verificação rápida do histórico do cliente para o acesso a crédito, o que não era fácil de verificar antes. A maioria dos clientes dos bancos está identificada.
"Não temos tido casos graves de fraudes na Nigéria, porque o sistema está a nos ajudar a identificar defraudadores. Também estamos a ser capazes de identificar funcionários públicos fantasmas e ampliar o acesso ao crédito", explica a dirigente do NIBSS.
Os administradores do BVN indicam que mais de 23 mil trabalhadores fantasmas foram identificados, gerando uma poupança mensal de mais de 10,5 milhões de euros para o Estado. "Incluir 36,8% da população adulta do país que se encontra fora do sistema bancário no momento. Nosso objetivo, na verdade, é preencher esta lacuna", diz Onyejegwe.
Expansão para a telefonia
A estrutura do BVN é formada pela interconexão entre bancos privados sob a supervisão do Banco Central da Nigéria (CBN, na sigla em inglês). As empresas portuguesas Five Thousand Miles e Papersoft, a americana Integrated Biometrics e a nigeriana Global Accelerex montaram a estrutura técnica do BVN.
O diretor-executivo da Papersoft, Daniel Alves, destaca que o CBN promove uma rara "simbiose" entre Estado e mercado. "É possível encontrar algo semelhante na Índia", ressalta.
A Nigéria vive a expetativa da expansão do BVN pelo setor de telecomunicações, embora autoridades da Comissão Nigeriana de Comunicações (NCC), o regulador do setor no país, defendam que a identidade digital deveria ser feita pelo Número de Identificação Nacional (NIN).
No entanto, o CBN permite que empresas de telecomunicações sejam operadoras de dinheiro móvel através da licença Payment Service Bank (PSB). O PSB dá às empresas de telefonia características semelhantes aos bancos tradicionais. "Os PSBs trabalharão de acordo com as regras do CBN e esta iniciativa está a levar a utilização do BVN pelos braços financeiros das empresas de telecomunicações. Os dois processos (NIN e BVN) estão a ocorrer de forma simultânea e harmonizada. Acho que pode tornar-se uma tendência do continente", explica.
"Muitos a coletar dados"
Moçambique não tem legislação sobre identidade digital e proteção de dados pessoais, mas a Lei de Transações Eletrónicas prevê regulamentos específicos sobre a matéria. A resolução da coleta de dados biométricos pelas empresas de telefonia não permite que dados sejam partilhados sem a autorização. Ressalva, entretanto, no item "F" do Artigo 6, que o INCM "pode sempre que julgar necessário definir outras entidades a quem pode partilhar os dados e as formas de o fazer".
No caso nigeriano, o diretor-executivo da Paradigm Initiative, Gbenga Sesan, ressalta que o BVN realmente evita fraudes, mas percebe que os mesmos dados coletados pelo sistema estão a ser coletados por outras agências governamentais, que não compartilham os dados entre si.
"Você tem que fornecer os mesmos dados aos Serviços de Migração para ter um passaporte, para a Comissão Nacional de Eleições para votar, para o Corpo Federal de Segurança Rodoviária por uma licença para dirigir, para a Comissão Nacional de Gestão da Identidade para ter um bilhete de identidade, para a empresa de telecomunicação para ter um cartão SIM. Você tem muitas pessoas a coletar dados", protesta.
A diretora-executiva do NIBSS, Christabel Onyejegwe, aposta que esse problema será resolvido em breve: "Esperamos que o bilhete de identidade nacional, o NIN, harmonize tudo", salienta.
Sesan salienta que a Nigéria também não tem uma lei de proteção de dados privados no direito primário e teme violações. "É bem possível que as pessoas que trabalham nas agências do Governo abusem dos dados dos cidadãos, especialmente daqueles que eles suspeitam que são dissidentes [políticos] ou pessoas que não demonstrem amor pelos governos para os quais trabalham", salienta.
Onyejegwe prega a privacidade como chave e referência do BVN. "Sem o consentimento da pessoa, ninguém pode compartilhar dados", defende.