Da política aos refugiados: Explicação do Ruanda
20 de dezembro de 2023Numa entrevista publicada a 17 de dezembro, o político alemão Jens Spahn, membro da oposição democrata-cristã de centro-direita, lançou a ideia de enviar os requerentes de asilo para o Ruanda para processamento, à semelhança do modelo proposto pelo Reino Unido.
A sugestão de Spahn foi imediatamente rejeitada pela ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, que, durante uma visita ao Ruanda na segunda-feira (18/12), classificou a ideia de "infantilmente ingénua".
Mas a proposta mostra como a ideia do processamento offshore de requerentes a asilo está a ganhar força. E coloca em evidência o sucesso do Ruanda em posicionar-se como um paraíso para os refugiados do mundo.
Oposição "inexistente"
O Presidente Paul Kagame e a Frente Patriótica Ruandesa (RPF) governam o Ruanda, uma pequena nação da África Oriental dominada por montanhas escarpadas e planícies férteis, desde o genocídio de 1994.
Em teoria o país é uma democracia multipartidária. Mas a oposição política é "inexistente", diz a agência de desenvolvimento norte-americana USAID.
As três vitórias eleitorais de Kagame foram afetadas por acusações numerosas e credíveis de irregularidades, incluindo fraude eleitoral e intimidação. Oficialmente, Kagame ganhou a presidência em 2017 com 99% dos votos.
O país é considerado uma "autocracia eleitoral" pelo Varieties of Democracy Project (V-Dem), uma base de dados internacional sobre as diversas formas de democracia. No relatório 2023 Liberdade no Mundo da ONG Freedom House, o Ruanda obteve apenas oito dos 40 pontos possíveis para os direitos políticos.
Outros direitos e liberdades no Ruanda
O Ruanda ratificou instrumentos internacionais e regionais que garantem os direitos humanos, que também estão consagrados na sua Constituição e noutras leis nacionais.
No entanto, vários observadores identificam problemas significativos em matéria de direitos no Ruanda, incluindo execuções extrajudiciais, desaparecimento de pessoas pelo Governo e tortura de dissidentes.
Esta situação tem tido um efeito inibidor sobre a liberdade de expressão e de associação, perpetuando "uma cultura de intolerância à dissidência", considera a organização de defesa dos direitos Human Rights Watch.
Após "décadas de opressão", os meios de comunicação social estão de rastos. "O panorama dos meios de comunicação social ruandeses é um dos mais pobres de África", afirma a ONG Repórteres sem Fronteiras, que classifica o país em 131º lugar entre 180 no seu índice de liberdade de imprensa de 2023.
Desenvolvimento palpável
Em 1994, Kagame herdou uma nação dilacerada pelo genocídio que, em apenas 100 dias, massacrou um milhão de tutsis e hutus moderados e destruiu a economia do Ruanda.
Atualmente, a economia ainda depende em grande parte da agricultura de subsistência. O Ruanda não possui os recursos naturais de muitos dos seus vizinhos.
Mas Kagame conduziu o Ruanda para um forte crescimento económico e "melhorias substanciais" nos padrões de vida, de acordo com o Banco Mundial. O Produto Interno Bruto (PIB) registou um aumento de 142% entre 2000 e 2020 e o número de pessoas que vive abaixo do limiar de pobreza desceu para 52% em 2016-17. O país reduziu a mortalidade materna e infantil e os seus 13 milhões de habitantes estão agora entre os que vivem mais tempo na África Subsariana.
Classificado como uma das nações menos corruptas de África, o Ruanda também subiu 100 posições na última década no que diz respeito à facilidade de fazer negócios, ocupando o segundo lugar no continente.
Já no que toca o investimento privado, o Ruanda recebe menos do que a média de países africanos de baixos rendimentos. Fatores como a falta de mão de qualificada, a falta de acesso à costa e o elevado preço da eletricidade, desencorajam os investidores.
Coqueluche do Ocidente
A estabilidade política e a baixa corrupção tornaram o Ruanda num recipiente preferido da ajuda ocidental. Kigali recebe cerca de mil milhões de dólares em assistência por ano, o mais elevado volume per capita na África Oriental.
"É o país que melhor ilustra como a ajuda ao desenvolvimento tem sido utilizada de forma eficaz, quando o que interessa são só estradas limpas e edifícios bonitos e elegantes, mas não se presta atenção à paz e à segurança, ao seu papel na política regional e, na verdade, aos direitos humanos", comenta Toni Haastrup, da Universidade de Manchester, no Reino Unido.
A situação dos refugiados no Ruanda
O Ruanda acolhe cerca de 135.000 refugiados, principalmente do Burundi e da República Democrática do Congo (RDC). Não sendo obrigados a viver num campo como em muitos outros países, gozam de liberdade de circulação e têm o direito de trabalhar, possuir propriedades, registar empresas e abrir contas bancárias.
As políticas de "inclusão económica" do Ruanda em relação aos refugiados "destacam-se como um modelo com lições aprendidas para a África Oriental e não só", conclui um relatório de 2023 da organização de defesa dos refugiados Refugees International.
Apesar disso, os refugiados no Ruanda enfrentam preconceitos e discriminação e a maioria dos vive na pobreza. 93% vivem em campos e dependem de uma ajuda em dinheiro equivalente a sete euros por mês para comprar se alimentarem.
O refugiado burundês Kelly Nimubona disse à DW, no ano passado, que a vida no Ruanda era difícil. "O dinheiro não chega para duas refeições por dia", disse, acrescentando que também não havia qualquer hipótese de arranjar trabalho.
Pobreza à parte, as organizações de defesa dos direitos humanos dizem que toda a história do Ruanda faz com que não seja um país ideal para refugiados.
Não é por acaso que, em novembro, o Supremo Tribunal do Reino Unido decidiu que os requerentes de asilo não estariam seguros no Ruanda, impedindo o Governo londrino de enviar os refugiados para aquele o país africano.
Porque é que o Ruanda quer acolher mais refugiados?
No mês passado, ao abrigo de uma parceria com a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Ruanda recebeu um novo grupo de requerentes de asilo evacuados de centros de detenção da Líbia.
O país também tinha um acordo agora extinto com Israel para receber requerentes de asilo rejeitados por aquele país. Mais recentemente, o Ruanda assinou acordos similares com o Reino Unido e a Dinamarca, embora nenhum destes países tenha ainda enviado migrantes.
A porta-voz do governo ruandês, Yolande Makolo, disse ao recentemente que o Ruanda mantém as portas abertas aos refugiados porque as pessoas no país sabem "o que é estar em fuga, ou ser deslocado, devido à história do nosso país".
Mas para o especialista em política global Toni Haastrup, a política de refugiados do Ruanda tem outro objetivo. "É uma forma de legitimar o Ruanda na comunidade internacional", disse à DW. "Ninguém vai querer criticar o Ruanda se Kigali aceitar receber todos estes refugiados".