"Eu é que fico com a minha irmã"
16 de outubro de 2012
Quando chegou pela primeira vez a Maputo, em 2004, a italiana Elena Colonna ficou espantada com uma particularidade das ruas da capital moçambicana.
Por todo o lado, meninos pequenos tomavam conta de outros meninos pequenos. A pares, em grupo, o caminho das crianças para a escola ou para casa, a várias horas do dia, era percorrido na companhia de outras crianças. Mais velhos cuidavam dos mais novos, enquanto tentavam aproveitar os minutos de passeio para conviver com os colegas e vizinhos.
"Ver crianças dos seus 7 ou 8 anos com outra criança amarrada atrás, ou de mãos dadas com um pequenino que acabava mesmo de aprender a caminhar sempre me chamou a atenção", conta a investigadora, para quem este facto é "uma coisa muito diferente, que não se costuma ver nos países europeus".
Vida quotidiana das crianças da Matola foi mote para tese
Daí até decidir o tema do seu doutoramento em Sociologia da Criança, pela Universidade do Minho, no norte de Portugal, foi apenas um passo. Elena Colonna explica que "quando chegou a oportunidade de aprofundar uma questão", ficou mesmo "interessada em perceber como é que isso acontecia". "O que é que, de facto, fazia essas criancas ficarem responsáveis por outras crianças, quis perceber essa realidade", afirma.
Elena Colonna viveu no bairro Infulene, na Matola, durante vários meses, onde pôde conhecer de perto a rotina das crianças da periferia da capital moçambicana. Entre tarefas domésticas, escola e tomar conta dos irmãos, o dia é longo.
"De manhã acordavam e tinham uma série de tarefas que tanto tinham a ver com o cuidar de si - lavar a cara, escovar os dentes, cuidar da higiene pessoal - mas também uma série de responsabilidades em relação aos irmãos mais novos e à família", descreve a investigadora.
Tarefas como varrer o quintal, lavar a louça ou comprar pão ocupam a maior parte da manhã destas crianças. À tarde, vão à escola, encarregues de acompanhar os irmãos mais novos. "Na volta é que têm algum tempo para brincar", diz Elena Colonna, explicando que "o próprio percurso da escola para casa é uma oportunidade para estar com os amigos, conversar e brincar um pouco".
Tarefas domésticas e vida familiar marcam infância
Os meninos e meninas que conheceu na escola e nas casas do bairro da periferia de Maputo permitiram à investigadora perceber a experiência específica de ser criança, aqui. "Ficam de facto muito ocupadas em relação às tarefas familiares, como cuidar dos mais novos e actividades domésticas", conclui.
“Eu é que fico com a minha irmã” é o título do trabalho de Elena Colonna. E resume bem a realidade destas crianças. Uma frase real, ouvida da boca de um menino do bairro do Infulene, questionado sobre o que acontecia quando a mãe e os irmãos saíam de casa. Preparar papa e mudar fraldas não é novidade para quem faz de "babysitter" desde muito cedo.
E porquê tanta responsabilidade colocada em ombros tão frágeis? Os valores da sociedade de Moçambique podem ajudar a entender. Segundo a investigadora, "isto faz parte da tradição e da cultura moçambicanas". "Mesmo na sociedade actual, mesmo nas zonas urbanas, de facto, há esta necessidade", explica, acrescentando que "as mães precisam de sair e as crianças são a solução mais fácil e acessível".
Na Matola, as crianças são felizes
Aos olhos de Elena Colonna e de grande parte das crianças dos 10 aos 13 anos com quem partilhou meses de investigação, tomar conta dos irmãos tem as suas vantagens. "É uma experiência muito enriquecedora", considera. Tanto para as crianças "cuidadoras", que "se sentem úteis e contribuem para ajudar a família e aprendem", como para os mais novos, que, segundo a socióloga, "também aproveitam muito desta relação, porque os irmãos mais velhos, comparando com os adultos, têm mais paciência."
Mas há quem não goste de o fazer. "Há casos em que elas mesmo demonstram que gostariam de não ter essa responsabilidade, para brincar à vontade", conta a doutorada.
Ainda assim, Elena Colonna concluiu: neste bairro, como em tantos outros da periferia de Maputo, as crianças são crianças felizes. E, por isso, a investigadora deixa um conselho a quem olha de fora para a realidade moçambicana.
"Não julgar a partir daqueles que são os nossos hábitos e pontos de vista europeus mas sim tentar perceber, concretamente, como é que acontece". Isto porque, segundo a socióloga, "à primeira vista uma pessoa vê as crianças sozinhas e pode achar que aquilo é abandono, algo muito negativo". Mas, na verdade, "tentando aproximar-se mais, vamos ver que a realidade é muito mais complexa e interessante", conclui.
Autora: Maria João Pinto
Edição: António Rocha