Guiné-Bissau vive uma "charada constitucional"
6 de novembro de 2019Em plena fase de campanha eleitoral, a Guiné-Bissau tem dois governos e dois primeiros-ministros. Onofre dos Santos analisa a crise política com frontalidade, mas com alguma cautela.
Para o ex-juiz conselheiro do Tribunal Constitucional de Angola, o impasse provocado pelo decreto assinado por José Mário Vaz (JOMAV) ao criar um Governo de iniciativa presidencial e demitir o Executivo liderado por Aristides Gomes, que resulta das legislativas de 10 de março, é um enigma melindroso.
"Eu julgo que aquilo é uma charada quase constitucional, que não sei qual será a solução", afirma Onofre dos Santos, antigo diretor-geral das eleições em Angola, que supervisionou atos eleitorais em vários países, entre os quais na Guiné-Bissau.
Em declarações à DW África e à agência Lusa, afirma que este "episódio é o prosseguimento de uma novela que já se vem desenrolando" há vários anos.
"Só devia haver um Governo"
Crítico em relação à partilha do poder e à forma como o regime presidencialista é exercido na Guiné-Bissau, o juiz conselheiro jubilado acredita que só os resultados das eleições de 24 de novembro poderão ser a chave da solução deste problema.
"Só devia haver um Governo. Só deve haver um Presidente. Quando há dois governos, um que está demitido e outro que se mantém no poder, há alguma coisa que está errada. Um deles está errado", sublinha.
Santos lamenta a "teimosia pessoal" da classe política em insistir nesta guerrilha entre os poderes, a que chama de "bicefalismo". O mandato de José Mário Vaz terminou a 23 de junho deste ano e o Presidente em exercício surge como um dos doze candidatos às eleições deste mês.
Na opinião do juiz jubilado angolano, "o Presidente, embora esteja em fim de mandato, não deixa de exercer os poderes que tem. Não há nada na Constituição que proíba demitir um Governo pelo facto de estar em fim de mandato."
Mas Onofre dos Santos entende que não é adequado fazê-lo, sendo ele próprio candidato às presidenciais, admitindo que este episódio indica tratar-se de "uma guerra pessoal" entre entidades ou personalidades em jogo. "Isto, no fundo, é o epílogo de situações que já tiveram ressonâncias anteriores", afirma.
Eleições podem ser solução
"Assisti a muita coisa na Guiné-Bissau. Acho que é um país único, do grupo dos países de língua portuguesa, e creio que devemos dar-lhe agora uma chance de, com estas eleições presidenciais, poderem chegar a uma solução. Porque o que é curioso é que, no fundo, quem vai ter a palavra final é o povo, que vai decidir quem é que quer como Presidente", afirma o o ex-juiz conselheiro angolano.
"Depois deste exercício", acrescenta, "tudo vai depender se o povo volta a dar a este Presidente a maioria" para a sua reeleição. Onofre dos Santos diz ainda que não acredita no impacto de eventuais sanções da comunidade internacional, porque "não vão modificar literalmente nada até ao dia das eleições presidenciais."
Para o juiz jubilado, a Guiné-Bissau "é um dos países de África que sai fora do paradigma africano do presidencialismo". Considera que, na maioria dos países africanos, o presidencialismo é, por enquanto, "a forma que melhor resolve" as lutas pela partilha do poder.
Refere ainda que, para já - no atual ambiente de tensão - não há condições para uma reflexão a nível parlamentar sobre uma eventual revisão da atual Constituição, de cunho presidencialista. Segundo Onofre dos Santos, uma possível proposta de alteração da Constituição nunca deve ser feita "a quente".