Moçambique: E materializa-se a maldição dos recursos...
4 de fevereiro de 2019No começo de 2019, os ataques armados na província nortenha de Cabo Delgado chegaram pela primeira vez à cintura da região onde operam as multinacionais do gás, mais concretamente nas proximidades do acampamento da Anadarko, na península de Afungi.
Ações que fazem soar os alarmes: entre outras coisas, é este ano que a petrolífera norte-americana deve anunciar a decisão final de investimento para exploração de gás na Área 01 na província. Em Afungi, distrito de Palma, já decorrem obras para a instalação de uma fábrica de liquefação de gás e infraestruturas a ela relacionadas com capacidade para exportar 12 milhões de toneladas por ano.
Em que medida o aproximar dos ataques aos acampamentos das petrolíferas acelera a entrada de empresas de segurança estrangeiras, muito interessadas em proteger a costa moçambicana, como as do norte-americano Erik Prince, por exemplo?
"Sabia-se e dizia-se que isto que é o El Dorado pode virar um pesadelo amanhã e o pesadelo está a acontecer. Agora resta saber se o que se diz é o que corresponde a verdade, que sejam os Al Shabab e outros. Porque existem outras hipóteses, porque estão os norte-americanos ali a explorarem, sabem que os americanos vão a correr quando há riquezas, mas não são eles sozinhos, os chineses e russos também vão lá a correr", responde o criminalista António Frangoulis.
E questiona ainda: "Quem sabe se isso não tem a ver com uma ação para desanimar os que chegaram primeiro? E ao desanimarem ou abdicarem nessa altura não se chamem aqueles que estão na expetativa quando essas riquezas são descobertas."
A força dos EUA
Na semana passada, a Anadarko informou, segundo o jornal "A Verdade", que "de modo a garantir a prontidão das operações, existe uma necessidade imediata do fornecimento de pelo menos seis veículos de especificação B6 e serviços mecânicos e de gestão de frota associados na Península de Afungi". O jornal terá apurado que o B6 é o penúltimo nível de blindagem para viaturas ligeiras com capacidade de suportar ataques de fuzis M16 ou Kalashnikov AK47 e até mesmo aguentar a detonação de até duas granadas de mão.
E pouco depois, a 29 de janeiro de 2019, começou um exércício militar ao largo da costa de Cabo Delgado, uma ação conjunta em que participam o exército nacional, forças de outros 15 países e tem o apoio dos Estados Unidos, que termina no dia 7 de fevereiro.
O objetivo "é reforçar a cooperação multilateral entre as forças navais que operam no Oceano Índico e concentrar-se-á no desenvolvimento de capacidades relacionadas com a identificação, abordagem e busca de embarcações suspeitas no mar".
Soberania, quo vadis?
Estas posições e ações não passam a ideia de que um Estado, com protagonismo externo, está a ser criado dentro do Estado moçambicano?
Pedro Nhacete é analista político do Centro de Estudo Estratégicos Internacionais em Moçambique e responde: "Penso que Moçambique está a perder a sua soberania, ela está a ruir porque um Estado para proteger o seu cidadão não precisa de apoio externo. Então, se existe uma força externa, no sentido de se ir buscar [o apoio de uma superpotência] ou se o houver se se permitir esse apoio para proteger as suas populações então estão numa situação de ingerência. Penso que Moçambique está preparado para debelar qualquer manifestação de desordem."
E nesta segunda-feira (04.02.), o Governo norte-americano manifestou disponibilidade em ajudar Moçambique a combater os grupos armados. Para o encarregado de Negócios da Embaixada dos Estados Unidos da América em Moçambique, Bryan Hunt, com o desenvolvimento dos projetos de exploração de gás, torna-se cada vez mais importante reforçar a segurança no local.
Moçambique de mãos atadas?
Até que ponto as autoridades moçambicanas estão de mãos atadas, a ponto de se verem obrigadas a aceitar apoios desta natureza ou a presença de empresas de segurança estrangeiras na região? "O Estado moçambicano para se afirmar como soberano deve adotar alguma política através da qual os estados que estão a investir reconheçam que estão dentro de um Estado que possa proteger os seus interesses. Por exemplo, os chineses também têm os seus investimentos cá, mas nunca vimos uma força chinesa dentro do Estado moçambicano", opina Pedro Nhacete.
E o analista político diz que "é bom termos em conta que o Estado moçambicano está de mãos atadas porque assim o permitiu, tal como outros problemas que surgem. Esses acordos mal parados, assinados de forma não aberta que nem a Assembleia da República dirime, resulta nessa situação em que os governos são postos em causa. Poderia até adiantar que sejam acordos secretos e a contra-parte que é robusta militarmente tem de se impôr."
Em curso a instrumentalização da desordem?
Em meados de 2018, quando questionado sobre a possível entrada em funcionamento de uma "joint venture" entre a ProIndicus, uma das três empresas envolvidas das famigeradas dívidas ocultas que visava justamente garantir a segurança marítima, e a Lancaster 6 Group, de Erik Prince, o analista Calton Cadeado citou a teoria da instrumentalização da desordem de Patrick Chabal, que considera que o objetivo é atingir fins económicos especiais, económicos, geopolíticos.
É que a ideia de que tenha sido orquestrada uma desestabilização difícil de ser neutralizada pelo Estado moçambicano não é de todo absurda para certos setores. É que a ser verdade traria consequências nefastas para as multinacionais do petróleo, o que ditaria a sua saída, adiando "futuro" de Moçambique, algo indesejado por Maputo, ou colocaria certas multinacionais em posição de vantagem nas negociações, prejudicando os planos de desenvolvimento de Moçambique.
E Moçambique confronta-se com uma imagem suja por causa das dívidas ocultas e com alguns dos seus membros, ligados à elite política, a contas com a justiça norte-americana. E por conta disso perdeu quase todos os apoios externos, tornando-se pouco atrativo ao investimento estrangeiro, penalizando assim a economia.