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Porque acontecem tantos linchamentos?

António Rocha9 de outubro de 2013

Por falta de confiança nas forças policiais, cada vez têm sido mais recorrentes casos de espancamentos mortais em diferentes países dos PALOP. O sociólogo Carlos Serra diz que o linchamento "é a justiça privatizada".

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Sociólogo moçambicano Carlos Serra estuda há décadas as questões do linchamentoFoto: Ismael Miquidade

Espancamentos mortais protagonizados por populares contra alegados criminosos têm ocorrido em algumas cidades moçambicanas e na terça-feira (8.10) este fenómeno de linchamento repetiu-se em Bissau, capital guineense. Um homem nigeriano morreu depois de ter sido acusado de supostos casos de rapto de crianças e de ter sido espancado pela população. De acordo com testemunhas, carros foram incendiados e a embaixada da Nigéria foi vandalizada por dezenas de pessoas em fúria.

Observadores e especialistas referem que a população justifica estas chamadas "execuções sumárias informais" com a falta de confiança no aparelho do Estado que deveria combater melhor a insegurança das populações.

Para o sociólogo moçambicano, Carlos Serra, do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, que há anos estuda os linchamentos, este fenómeno é um exercício - pleno e corrente em Moçambique - de privatização da justiça, com os populares a chamar a si a ação punitiva de pessoas "suspeitas ou culpadas de crimes".

DW África: Porque é que a população lincha? Para punir ou para indicar o seu desacordo com alternativas de mudança social que violam concepções, valores e mesmo normas de conduta tradicionais do ser humano?

Carlos Serra (CS): Os linchamentos da sua versão mais clássica, aqueles que nós podemos encontrar aqui em Moçambique, têm como alvo jovens desempregados do sexo masculino. Nas periferias mal iluminadas, pouco policiadas, lá onde o Estado escasseia, isto é - onde falta polícia e iluminação - é onde acontece o linchamento.

O linchamento existe quando o Estado é fraco. Pode surgir nestas circunstâncias como uma espécie de privatização da justiça, onde as pessoas se sentem intranquilas e indignadas. As pessoas muitas vezes não confiam na polícia e acabam por fazer justiça com as próprias mãos. É portanto uma indignação, uma punição, uma justificação e é a busca de um bode expiatório também. Acontece muitas vezes que quem é linchado não é aquele que roubou, mas aquele que se julga que terá roubado. Ou é aquele que paga por todas.

DW África: O linchamento é uma manifestação de desordem ou um questionamento da ordem?

Maputo Mosambik Hauptstadt Panorama Stadt Stadtansicht
Maputo, Matola e Beira são as cidades que o sociólogo destaca como focos de linchamentoFoto: picture-alliance/dpa

CS: É a justiça privatizada. Isso significa, por mais contraditório que possa parecer, que o linchamento é uma manifestação inequívoca de desordem mas simultaneamente nessa violência cruel, existe um apelo à ordem. As pessoas querem que haja ordem. O bode expiatório é uma figura importante quando queremos compreender este fenómeno complexo, mas isto é ao nível da periferia.

Lá os roubos campeiam, onde a pequena e grande criminalidade estão por todo o lado. Onde há noite não há iluminação, onde as pessoas estão aterrorizadas. É como se fosse uma espécie de fusível que salta, uma espécie de bode expiatório que se procura.

DW África: Os linchamentos podem ser interpretados como um reflexo do cansaço da população em relação à inoperância da polícia?

CS: Sim. Se for ver aqui à Tanzânia, é frequente haver linchamentos. As pessoas ficam tão cansadas, e dizem que "aquele polícia não resolve" ou "quando quer resolver é corrupto" e as pessoas decidem resolver o problema à sua maneira. Há um momento em que as pessoas explodem.

É por isso que muitas vezes o linchamento é sentido pelas pessoas como um ato que resolve problemas sociais porque é suposto que a polícia não está lá para ajudar, aquilo a que eu chamo inoperância da polícia. O linchamento é uma desordem social, como eu costumo chamar, o eclipse do social, mas é ao mesmo tempo um apelo veemente, rude, à ordem.

DW África: E uma frustração sentida pelas cidadãos perante a incapacidade do aparelho estatal em combater a delinquência e outros fenómenos da sociedade...

Porque acontecem tantos linchamentos?

CS: Se se fizer um estudo da morfologia das nossas periferias, vai ver-se que espaços periurbanos hoje são um produto também da guerra. Porque com a guerra que durou tantos anos no nosso país, muita gente fugiu do campo e veio para as cidades. Onde chegava arrumava a sua pequena trouxa e ficava ali.

Então, foram surgindo micro-cidades com condições desfavoráveis de vida e essas pessoas foram ali vivendo e hoje requerem e exigem o mesmo tratamento que encontra-se noutras áereas com as mesmas condições. O hospital, a polícia, a electricidade, a água... Há problemas constantes, as pessoas exigem.

DW África: Mas será que as autoridades não punem como devia ser estes linchamentos para impedir que novos casos ocorram?

CS: Esse é um problema muito delicado porque a polícia tem feito sistemáticos encontros com as comunidades. Tentam mostrar que não é correto linchar pessoas e que as pessoas devem confiar na polícia e nos tribunais.

Mas, eu também sei, que a polícia uma vez fez um estudo sobre reações populares e verificou que é preciso ter muito cuidado quando se age com comunidades exaltadas porque se se age mal com um polícia, pode-se ser acusado de se ser um homem ou mulher ao serviço dos criminosos. Isso pode ter consequências sociais bem mais graves.

DW África: Até agora parece que a abordagem do Governo moçambicano no combate à criminalidade tem falhado, talvez por não ter um caráter abrangente na sua adoção. Isso também acontece com a questão dos linchamentos?

CS: Os linchamentos têm preocupado muito o Governo. Lembrou-me que os informes anuais do Procurador-Geral da República mostravam inquietação grande quanto aos linchamentos. Mas não basta porque o problema dos linchamentos é bem mais vasto que a colocação de um posto policial aqui ou acolá. É um problema social global que passa também por saber como é que devemos proceder quando crianças tão pequenas acham que senhoras idosas devem ser queimadas.

Armando Guebuza
Sociólogo diz que Governo de Armando Guebuza (na foto) se preocupa com os linchamentosFoto: DW/Romeu da Silva

Não é um problema só de posto social, é um problema cultural. Provavelmente nós precisamos de repensar sobre as formas como concebemos as pessoas de uma certa idade. Os nosso governantes têm estado sempre preocupados, até falam publicamente sobre estas acusações terríveis, que levam à morte de todos aqueles que constituem em perfeitas qualidades um peso social.

DW África: Quando fala de crimes periurbanos poder-se-à falar de uma geografia de linchamento?

CS: Sim, talvez se possa pensar nisso. Por exemplo, Maputo é uma das cidades de linchamento, agora nos últimos tempos com alguma redução. A 20 quilómetros tem Matola, ali houve cinco ou seis linchamentos terríveis, cruéis. Matola, Maputo, Beira... Mas atenção, também existem cidades com periferias enormes onde não há linchamentos é por isso que muita precaução é necessária para não se fazer uma equivalência mecânica entre periferia e linchamento.

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