Nikotina KF: "É complicado pensar diferente" em Moçambique
12 de dezembro de 2024Nikotina KF, nome artístico do rapper moçambicano Higino Fumo, é o autor da banda sonora usada como hino pelos jovens que lideram os protestos em Moçambique. Seguidor do conterrâneo Azagaia, falecido em 2023 em Maputo, cuja voz se afirmou como um dos críticos do partido no poder, a FRELIMO, Nikotina é um dos jovens sedentos de justiça que apareceu na vanguarda da contestação dos resultados das eleições de 9 de outubro, que o candidato presidencial Venâncio Mondlane considera fraudulentos ao dar vitória a Daniel Chapo.
Em entrevista à DW, o rapper fala das manifestações de rua, que "infelizmente tornaram-se violentas", mas considera que manifestar é um direito constitucional dos cidadãos. Sustenta que a sua música, a exemplo das canções de Azagaia, "são dizeres poéticos de rua, de uma arte que já era feita pelos nossos ancestrais escravos".
A propósito da atual situação política, marcada por consecutivos dias de protesto, o rapper afirma: "Vivemos num sítio em que é muito complicado pensar de forma diferente”.
DW África: Porque compôs a sua recente música, que está a fazer sucesso no contexto dos protestos?
Nikotina KF (NKF): A música chama-se "Pray for Moz", que resumidamente, significa "Rezemos por Moçambique". Essa música vai de acordo com aquilo que nós temos vivido, aquando das nossas manifestações pacíficas, que infelizmente agora tornaram-se violentas porque o povo acabou usando muito o artigo 80 [da Constituição da República], que dá direito a resistência. E está a ter um impacto nos jovens.
A ideia sempre foi essa, divulgar para o mundo o que nós temos vivido, as agressões que temos vivido quando tentamos garantir um direito constitucional.
DW África: A sua música passou a ser uma espécie de hino dos protestos, a semelhança das músicas do falecido rapper Azagaia.
NKF: Quem me dera. Azagaia foi um profeta. Azagaia escreveu a "Bíblia" das manifestações. Se formos a observar, vamos descobrir que as manifestações, até a própria forma em que são convocadas pelo candidato Venâncio [Mondlane], é muito daquilo que é Azagaia. Azagaia criou o hino daquilo que vai ser a revolução moçambicana - não sei se é desta, mas da próxima, provavelmente será. Toda esta fase está guiada no Azagaia. Eu sou só um jovem que bebeu da influência dele, para não ficar alheio ao combate do povo.
DW África: O seu hino não é publicado nos órgãos de comunicação estatais?
NKF: Pois, pois. Não é só o meu hino. Todas as músicas que não vão de acordo com a agenda do sistema não são publicadas. E nós, graças a Deus, também não as fazemos com intenção de lá passar. São dizeres poéticos de rua, de uma arte que já era feita pelos nossos ancestrais, quando foram escravos, disputas rimáticas e tudo mais.
Nós estamos a reviver aquilo que é a história, a nossa génese como africanos, e nós comunicamos de mão em mão. É nessa linha de comunicação atemporal, baseada simplesmente na sensação de dizeres a verdade do que tu pensas, que nós chegamos até aqui. A informação anda de mão em mão. É por aí.
DW África: A sua música de intervenção está a custar-lhe perseguição?
NKF: Exatamente. Mas a perseguição só veio agudizar, porque já havia começado esse movimento, logo que comecei a apresentar a minha postura pelos canais de televisão. Nós vivemos num sítio em que é muito complicado pensar de forma diferente, mas nós não podemos fugir e estar a sofrer perseguições de quem nos devia defender.
DW África: Como é que a classe dos músicos e, de uma maneira geral, dos artistas, vê estes desentendimentos?
NKF: Há uma música, por exemplo, a partir de um provérbio, que diz que "o amor é cego". Então, eu não vejo esse desentendimento - o que eu vejo são clivagens ou a não aceitação de opiniões diferentes.
Antigamente, algum grego poderia chamar a isso de ostracismo. Está a haver um ostracismo cultural que, de certa forma, dá a impressão de estar a haver uma divisão. Mas não.
Então, eu, como uma dessas pessoas certas, acabo percebendo que elas estão a criar um movimento que até é antidemocrático. Está a haver uma intolerância por parte de todos os outros que defendem outro tipo de causa. Então, eu acredito que está a haver um ostracismo cultural.
DW África: Esta clivagem se deve a convicções ou a interesses de sobrevivência?
NKF: Poderia imaginar que roça os dois aspetos. Roça interesses, primeiramente, porque estamos numa sociedade em que nós de pessoas que fizeram a luta pelo povo e em defesa dos direitos humanos, temos o exemplo do próprio Azagaia; são cantores que morreram em situação de desgraça. Eu não creio que ainda possa tatear um horizonte vislumbrante de sucesso.
Vamos ser um pouco mais apertados. Então, as pessoas que não sabem, que geralmente não têm as convicções, por exemplo, como eu tenho de que é preciso fazer alguma coisa. É preciso vivemos por alguma coisa do que morrermos por nada.
Então, acabamos defendendo esse interesse. Mas os outros, que assim não o aceitam fazer, podem dizer que eles vivem connosco, sabem o que estamos a passar. Simplesmente, eles têm medo de opressão ou represália. Então, eu acho que vai roçando convicções e também os interesses, de certa forma.