Ruandeses percorrem longo caminho para superar o genocídio
30 de maio de 2014Neste ano, completam-se 20 anos da matança que, segundo as Nações Unidas, teria vitimado 800 mil pessoas do grupo étnico Tutsi em três meses. Hutus moderados também foram assassinados.
Em uma colina na região de Kigali fica o memorial de Gisozi. Desde a inauguração em 2004, o monumento é passagem obrigatória para todos os que visitam Ruanda, sejam turistas ou chefes de Estado. É o local do descanso eterno para 259 mil vítimas do genocídio.
Fotos expostas, peças de roupas e pertences pessoais lembram os que entre abril e julho de 1994 perderam as suas vidas na onda de violência que arrasou o país.
Na chamada "Sala das Crianças“, fotos estão penduradas em formato grande. Logo a baixo está o retrato de Francine. Um belo sorriso dá brilho especial ao rosto da moça. É a lembrança do cotidiano tranqüilo de uma criança. Yvette Jallade, da Fundação Aegis Trust, dirige o memorial e o arquivo do genocídio e apresenta Francine.
“Tinha 12 anos na época. Ela gostava de nadar e adorava ovos e batatas fritas. Gostava de tomar leite e Fanta. Sua melhor amiga foi a sua irmão Claudete. Ela foi morta a golpes de catana“, diz Jallde.
Os massacres levaram cerca de três meses. Vários corpos ficaram nas ruas a céu aberto. O governo planejou o extermínio da minoria tutsi e doou recursos para acabar com aqueles que eram chamados de “baratas”.
A matança aconteceu diante de uma comunidade internacional paralisada até o dia 4 de Julho. As Nações Unidas calculam que aproximadamente 800 mil pessoas foram mortas. Conforme Yvette Jallade, o memorial de Gisozi quer homenagear cada uma das vítimas.
“Para se conseguir ter uma idéia do que aconteceu, é preciso passar um tempo com um sobrevivente. Aí, ele vai te perguntar como é uma pessoa faminta e com medo se esconder durante 100 dias. Como é redescobrir a sua casa queimada e saqueada e a sua família exterminada. Um genocídio de um povo é tudo isto. E isto aconteceu para quase um milhão de pessoas”, explica.
O que restou
D’Artagnan Habintwali é um sobrevivente. Ele tinha somente cinco anos, quando os assassinatos aconteceram na sua cidade natal, Butare – no Sul do país. "Eu vi as pessoas tendo suas casas queimadas e depois sendo mortas. É muito difícil esquecer esta imagem. E impossível tentar fazer isso para viver em paz. As imagens estão sempre lá”, lembra.
Os ruandeses percorreram durante a última década um longo caminho até a reconciliação. Uma das medidas mais recentes foi retirar a exigência de informar o grupo étnico ao qual o cidadão pertence nos documentos de identificação. Desde então, ao invés de existir tutsis, hutus ou twas (o terceiro grupo étnico do Ruanda), todos são ruandeses.
A reintrodução dos trabalhos comunitários regulares, os chamados “Umuganda”, também deve colaborar para intensificar o sentimento de comunidade. O tratamento legal de genocídio, no entanto, foi um processo bastante complicado. Em 1994, um tribunal penal internacional especial com sede em Arusha, na Tanzânia, foi criado somente para apurar as responsabilidades pelo genocídio.
O trabalho de apuração criminal é demorado. Muitos criminosos fugiram para o exterior e as provas são difíceis de serem encontradas. O representante do escritório de informações do tribunal especial, Innocent Kamanzi, está satisfeito com os resultados.
"A maioria dos ministros envolvidos na organização do genocídio foram presos e levados à justiça. Da mesma forma, um número maior de oficiais e soldados, milicianos, clérigos e representantes da mídia que influenciaram fortemente a implementação do genocídio", explica.
O Tribunal proferiu em 2013 suas últimas sentenças em primeira instância e provavelmente estará envolvido na apreciação de recursos até meados de 2015. De um total de 65 pessoas, 38 réus foram levados à júri e condenados a longas penas de prisão. No entanto, o tribunal acabou sendo bastante criticado por Kigali. Observadores ruandeses avaliam que o tribunal foi muito caro e pouco eficiente.
Solução caseira
O governo do presidente Paul Kagame reinstaurou os tribunais tradicionais, os chamados Gacaca. Foi uma decisão de emergência, uma vez que centenas de milhares de pessoas participaram de abril a julho de 1994 de assassinatos, atos de violência e saques. Prisões ficaram superlotadas.
Acumulam-se listas de espera para processos infinitos em tribunais nacionais. Jean Damascène Gasanabo é um alto funcionário da Comissão Nacional de Luta contra o Genocídio (CNLG) para ele tais tribunais serviram para a reconciliação também. "Os Gacacas serviram para dar tempo e espaço para as pessoas conversarem. Não se pode pedir para os vizinhos simplesmente se reconciliarem, mas tivemos que iniciar este processo."
Nos Gacacas não havia a presença de advogados nem de juízes. Os 12 mil tribunais populares foram mediados pelos chamados membros responsáveis da comunidade. Organizações internacionais de direitos humanos criticaram muitos erros durante estes julgamentos. Entre 2005 e 2012, quase 2 milhões de pessoas foram ouvidas em todo o país e mais de metade foram condenados à prisão ou a serviços comunitários.
Em Simbi, uma aldeia perto da cidade de Butare, a justiça condenou responsáveis diretos e colaboradores do genocídio. Um dos colaboradores condenados foi Jean-Pierre Karenzi, que se arrepende do que fez. “Eu participei do genocídio porque o governo daquela época nos instigou a fazê-lo", lamenta.
Jean-Pierre Karenzi foi condenado a 10 anos de prisão. Quando foi solto, em 2005, foi considerado como um “arrependido” por uma ONG que trabalha com a reconciliação nas comunidades - "Association Modeste et Innocent" (AMI, sigla que significa "amigo" em francês). Mais de 5 mil pessoas foram vítimas do genocídio em Simbi. O sobrevivente Jean-Baptiste Kanobayire foi um dos primeiros que parciparam das formações da AMI.
"Eu já tinha sofrido demais. Aos poucos, eu decidi continuar a levar a vida. O que passou pertence ao passado. E se a vida continua, eu tenho que ser capaz de viver com todas as outras pessoas, como irmãos. Foi por isso que os participantes do massacre receberam esta instrução, para trabalharmos juntos pelo progresso e pela unidade da comunidade.“
Compensações
Há alguns anos, os membros da comunidade se organizaram em uma cooperativa agrícola - a "Duharanire Ubumwe N'Ubwiyunge" ("trabalho para a unidade e reconciliação" em português). Pessoas que perpetraram o massacre, como Jean-Pierre Karenzi, trabalham nos campos, 20 anos depois, para pagar as famílias prejudicadas – pessoas que tiveram casas e bens destruídos. Juntos, os cooperados querem expandir a produção agrícola e desenvolver economicamente a comunidade.
Em comparação com o Norte do país, o sul tem solos menos férteis. Mandioca, café, milho e bananas são produzidos em quantidades modestas. A cooperativa também vai criar gado. O presidente da organização, Dominique Ndahimana, diz que as condições de vida começaram a melhorar.
“Os sobreviventes dão dinheiro para que se comprem vacas para as pessoas que foram libertadas da prisão. Cada um de nós dá 5 mil francos, o equivalente a 5 euros. Por mês, chegamos a arrecadar o equivalente a 160 euros para comprar uma vaca. Nós já temos 27 vacas."
O governo ruandês apostou também há alguns anos no desenvolvimento econômico para reconciliar o país. Foram aplicados programas para reduzir a pobreza, oferecer seguro de saúde para todos e ampliar o acesso à educação. Paralelamente também foram incentivados empreendimentos privados que já renderam bons sinais conforme relatórios do Banco Mundial.
O sucesso é bastante celebrado pelos parceiros internacionais como a Alemanha. A diretora do Banco de Fomento alemão KFW, Daniela Beckmann, considera que o Ruanda conseguiu progressos significativos na redução da pobreza. De acordo com novos dados, houve redução na quota de pobres em 12 pontos percentuais.
“Em cinco anos, caiu a 45 por cento. Isto é muito bom quando comparamos com outros países africanos. Isso não quer dizer que não existam ainda grandes desafios", salienta
Para o Ruanda, um destes desafios é reduzir a dependência da ajuda internacional. Quase a metade do orçamento do país é proveniente desta ajuda – o que é bastante criticado pela oposição. Frank Habineza, presidente do Partido Verde Democrático de Ruanda, explica que o país tem a maior desigualdade de renda da região Leste da África.
“Mais de 60 por cento dos ruandeses vivem com menos de 5 dólares por dia. Nós acreditamos que a justiça social é possível. Mas isso requer mais espaço político baseado na democracia. Assim, os investidores estrangeiros adquirem confiança e investem no país porque vêem que é um lugar seguro para as próximas gerações ", explica.
Reconciliação e desenvolvimento
Na próxima eleição presidencial de 2017, o Partido Verde quer apresentar um candidato a fim de oferecer ao público uma alternativa para Paul Kagame.Na liderança da Frente Patriótica Ruandesa (RPF), o ex-comandante rebelde Kagame governa em quase uma autocracia desde o fim do genocídio.
Seu partido venceu as eleições parlamentares de setembro de 2013. Ganhou com cerca de três quartos dos votos. Para a população, Paul Kagame é um grande reformador.
Com 1,2 milhões de habitantes, a capital Kigali é um símbolo do progresso de Ruanda. No centro, gigantescos prédios comerciais se alinham nas avenidas com cruzamentos e sinais de trânsito. Blocos com painéis eletrônicos dão o tom da modernização.
Durante todo o dia, funcionários da prefeitura garantem a limpeza das ruas próximas a residência presidencial. Um centro de convenções internacional está sendo construído junto a um complexo hoteleiro em uma enorme área. Nos últimos 20 anos, a imagem da cidade mudou completamente conforme o prefeito Fidele Ndayisiba.
“Em 1994, [a cidade] era uma ruína. A maioria das casas foi abandonada e destruída. As infra-estruturas estavam em péssimo estado. Estavam em uma condição muito ruim. Vinte anos depois, nós restabelecemos a infra-estrutura básica. O setor privado reconstruiu os seus prédios. Iremos seguir esta tendência. Kigali será uma moderna e próspera cidade em 10 anos", projeta.
Mesmo que as pessoas ainda estejam fora do centro moderno da cidade e as chuvas ainda danifiquem as ruas com buracos, os ruandeses parecem pacientes e otimistas. D'Artagnan Habintwali, o menino traumatizado de Butare, tem agora 25 anos de idade. Está quase a completar os seus estudos e quer ser um escritor.
"Se recordarmos os anos 1995 ou 1996, teremos a ideia de que hoje nós vivemos em um país completamente diferente. Apesar disso, é preciso melhorar em muitos aspectos. No entanto, ainda vai chegar o tempo em que tudo vai ficar bem", espera o sobrevivente.