Arquivo precioso da Guiné-Bissau na Berlinale
16 de fevereiro de 2017"Spell Reel" faz parte da mostra Forum da 67ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim. O filme de 96 minutos é uma compilação de imagens fragmentadas do arquivo do Instituto de Cinema da Guiné-Bissau, feitas entre 1967 e 1980 durante a luta de libertação da Guiné-Bissau e recuperadas pelo projeto Arquivo Visionário do Arsenal - Instituto de Filme e Videoarte em Berlim.
Além dos fragmentos do passado, são intercaladas imagens de sessões de cinema itinerante realizadas na Guiné-Bissau e na Europa, em que o material de arquivo foi apresentado. Trata-se de um trabalho conjunto da realizadora portuguesa Filipa César, que compilou as imagens e criou o texto que conduz o filme, com os guineenses Flora Gomes e Sana na N’Hada, entre outros.
Na N’Hada, que documentou a luta de libertação no seu país, veio a Berlim para a estreia mundial de "Spell Reel" e está satisfeito com a recuperação do material.
"O material está a reviver. Já estava quase que desaparecido, mas com a ajuda da Filipa César, do [instituto] Arsenal e da Embaixada da Alemanha em Dakar, restaurámos uma parte do material. Esta parte foi difundida no nosso país e, com isso, a Filipa César fez o filme," conta N’Hada.
Documentando um sonho
A preto e branco, as imagens da luta nas matas da Guiné-Bissau revelam parte da história da libertação do país. Nas sessões de cinema itinerante realizadas mais recentemente, esses fragmentos foram comentados por Flora Gomes e Sana na N’Hada, que filmaram as cenas e explicam o contexto ao público.
"Em julho de 9176, o Prediente Luís Cabral fez uma visita oficial de carro ao sul. Um deputado local o desafiou a viajar de carro, e não de avião, para compreender bem as condições e necessidades da reconstrução do país. Aqui, ele caminha sobre a ponte Saltinho," relata Sana na N'Hada em crioulo num trecho do filme.
Em Berlim, Na N'Hada recordou como as imagens foram captadas.
"O nosso trabalho era compilar imagens daquilo que acontecia na Guiné. Havia a guerra, a vida na zona libertada, a vida política. Portanto, fazíamos imagens políticas, fotografias da população, sobre a vida na mata, a implicação que estavam a ter as ideias de Amílcar Cabral sobre a população e havia o guerrilheiro que se debatia pela independência do país," revela.
Sana recorda o que presenciou na época e os desafios que o trabalho em plena guerra lhe impunha.
"Difícil era viver a guerra, como toda a gente. Mas ter uma câmara a filmar pessoas a lutar, a dar um tiro, era muito mais complicado. Tínhamos esse privilégio, uma espécie de visão mais ou menos larga, diferente do próprio combatente simples. O operador de câmera tinha uma outra visão, pensando no futuro," recorda.
O realizador guineense avalia a experiência que viveu e o seu próprio papel na libertação do seu país.
"Eu sou parte do processo de libertação. Sou camponês, não conhecia o cinema antes de ir para a luta. Amílcar Cabral pensou que o processo tinha que ser documentado, fomos enviados para Cuba e aprendemos a manejar uma câmera e uma máquina fotográfica. Documentámos o processo como sendo parte da História. Eu faço parte do processo de independência. Portanto, descobri a vida e trabalhei na luta, naquilo que eu podia fazer," afirma.
Nova abordagem
De acordo com a realizadora Filipa César, a longa-metragem "Spell Reel" é um apanhado da pesquisa realizada por ela desde 2011, quando tomou conhecimento do arquivo das imagens.
"A ideia foi como pensar essas imagens hoje, perceber qual a possibilidade de as abordar hoje e se elas têm uma outra função hoje. Uma das coisas mais importantes para mim foi também perceber que o projeto de cinema que o Amílcar Cabral tinha em vista é um projeto também de criar um imaginário de libertação. Essa ideia do movimento de libertação também como algo que é mais abrangente do que só a guerra de libertação em si," revela.
"Spell Reel" não tem tradução para o português, devido à metáfora que o título em inglês permite, explica Filipa César.
"Spell Reel' tem um duplo sentido. 'Spell' tem um sentido de soletrar uma palavra, mas também é um feitiço. Portanto, esse duplo sentido era importante para mim. E 'reel' é bobina [de cinema]. Por um lado, a ideia de como definir o cinema como matéria e também o próprio feitiço. Não vou traduzir para o português, porque é impossível encontrar uma palavra como 'spell' que tenha esta dupla função," explica a realizadora portuguesa.
Com a participação na Berlinale, o realizador guineense Sana na N’Hada celebra a dimensão mundial do seu trabalho.
"Estou muito contente que aquilo que vamos ver agora tenha finalmente outra dimensão. Está sendo visto não só no ângulo que tínhamos visto, como lembrança da luta. A luta está sendo descoberta pela população mundial, mas os jovens guineenses também irão descobrir aquilo," considera.