Sobre reparações: "João Lourenço esteve muito mal"
24 de julho de 2024A visita oficial de três dias a Angola do primeiro-ministro português, Luís Montenegro, termina amanhã. É uma visita com forte pendor económico, mas em que também se abordou as questões migratórias. No entanto, o chefe do Executivo de Lisboa evitou abordar a temática das reparações históricas que suscitaram bastante polémica depois de pronunciamentos recentes do Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa.
Sobre esta matéria, o Presidente angolano João Lourenço referiu, no encontro ontem com Luís Montenegro, em Luanda, que os países colonizadores não teriam capacidade de pagar "o justo valor" pelas reparações.
Em entrevista à DW, o analista político angolano David Sambongo questiona a posição do chefe de Estado angolano sobre esta temática e fala sobre a política migratória portuguesa. Dadas as "relações históricas" entre os dois países, o analista considera Portugal "um parceiro estratégico" para Angola, inclusive no plano da migração, "que não se pode ignorar".
DW África: O primeiro-ministro português assumiu em Angola que os cidadãos da CPLP, em particular os imigrantes angolanos, têm "porta preferencial" de entrada em Portugal. E assegurou que, no caso dos países lusófonos, não houve qualquer alteração na política migratória. Como é que analisa estas declarações, sabendo que entre estes países há um acordo de mobilidade que parece estar a avançar a várias velocidades?
David Sambongo (DS): Relativamente a essa questão, o primeiro-ministro português vai no sentido de mostrar que, do ponto de vista da política migratória, Portugal privilegia as relações com os países que fazem parte da CPLP. Entretanto, há algumas reivindicações, por exemplo, por parte de angolanos que residem em Portugal ou foram para Portugal, que encontram alguma morosidade, sobretudo no acesso ao cartão de residência, que dá a possibilidade para a entrada e saída do país, sem muitos constrangimentos. [Mas] como o próprio primeiro-ministro e o Presidente da República angolano, João Lourenço, fizeram questão de sublinhar, esta é uma relação histórica, cultural, identitária, por também partilharmos a mesma língua.
DW África: Não acha que isto é já uma retórica?
DS: Penso que não, até porque este acordo de mobilidade está a avançar. Portugal acaba sendo muito importante para os angolanos, uma vez que Portugal também tem Angola como um parceiro estratégico, do ponto de vista da sua própria economia, do fornecimento de meios financeiros, sobretudo com esse olhar para o peso do investimento externo de Portugal.
Portanto, Portugal é um parceiro que não se pode ignorar e é importante que cada vez mais os angolanos que vão em Portugal, sobretudo na questão ligada ao fornecimento de serviços de saúde e na procura de melhor oferta formativa, sejam muito bem recebidos e tenham um tratamento digno.
DW África: Considera que as alterações à política migratória portuguesa do Governo de Luís Montenegro não são mais restritivas que a linha de abertura do executivo anterior?
DS: É um Governo novo. Não penso que, em três meses de Governo, nós encontremos ferramentas suficientes para uma análise política que se impõe e nos faça trazer posições consolidadas ou concretas em relação à comparação do Governo anterior com este Governo de Luís Montenegro.
DW África: O Presidente de Angola recusa que o seu país tenha qualquer intenção de pedir a Portugal reparações históricas pelos crimes cometidos pelo regime colonial. João Lourenço disse mesmo que "os países colonizadores não teriam capacidade de pagar 'o justo valor' pelas reparações". Como avalia esta posição de João Lourenço face à postura do Governo de Montenegro sobre esta matéria?
DS: O Presidente da República esteve muito mal em relação a essa matéria. Nota-se claramente que não tem domínio sobre essas matérias em relação à questão da reparação histórica. Há um debate muito avançado em várias academias em relação a isso. Há movimentos em países como a Bélgica, a França, a Alemanha, e também as próprias Nações Unidas assumiram esse discurso com a criação do projeto "A Rota dos Povos Escravizados", tutelado pela UNESCO, que, para além da questão da reparação histórica, fala da compensação histórica e, sobretudo, da preservação da memória da tragédia como meio para se evitar este fenómeno da escravização, de transformação do ser humano por via do racismo, por via de um conjunto de ações que foram praticadas contra a humanidade no período colonial.
O Presidente [não tem] uma ideia em relação a isso. [Devia ter-se mantido] calado, como fez o primeiro-ministro português, que aproveitou a "boleia" dos pronunciamentos errados do Presidente João Lourenço para não tecer comentários em relação a esse aspeto.
Já só lhe falta dois anos e meio para terminar o seu mandato e, provavelmente, uma outra liderança poderá considerar esta temática, que é fundamental para que possamos fazer com que aquilo que aconteceu nos séculos passados e terminou no final do século XX não volte a acontecer e consigamos preservar a memória da tragédia, que é fundamental para a reparação histórica dos atos cometidos na época colonial.
DW África: As posições que Luís Montenegro defendeu em Angola sobre vários temas no âmbito das relações bilaterais e multilaterais podem ser consideradas como uma posição europeia? Ou seja, na sua opinião, Portugal pode ser considerado o representante da Europa em Angola, dada a proximidade entre os dois países?
DS: Sim. Portugal é um interlocutor privilegiado da União Europeia na relação com Angola. Entretanto, essa questão de representação do ponto de vista político é um bocadinho complexa. Não é algo que se faz a bel-prazer; deve ser delegado. Penso que a União Europeia tem soberania quanto a delegar Portugal para fazer isto, para ser o grande representante na relação com o Estado angolano. Por aquilo que são os aspetos históricos e culturais da relação entre Angola e a República Portuguesa, claramente Portugal é um interlocutor favorável e nato para representar os interesses da União Europeia junto do Estado angolano.