Ação de "justiceiros" confronta Brasil com velhas mazelas
12 de fevereiro de 2014"A gente sai em uma ronda para procurar esses criminosos. A gente bate, dá uma lição de moral, impõe respeito em cima deles e depois libera. Como se nós fossemos os policiais do bairro." A declaração, dada ao programa Fantástico, da TV Globo, é de um integrante do grupo que se autodenomina "justiceiros", responsável por prender com uma trava de bicicleta um adolescente de 15 anos a um poste no Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
As fotos do menor – que tem passagens pela polícia por furto – nu e amarrado ao poste logo ganharam as redes sociais e foram reproduzidas pela imprensa. Diante do sentimento de insegurança na cidade e de omissão do Estado, a ação do grupo não demorou a encontrar apoio de parte da sociedade. Em comentários nos sites de grandes jornais, a frase "está com pena, leva para casa" virou quase bordão entre leitores.
As manifestações favoráveis foram externadas até pela âncora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade. E colocaram em debate temas que vão além da violência estrutural e da insegurança em grandes cidades brasileiras. A ação de um grupo formado à margem da lei e do Estado e motivado pela ideia de "fazer justiça com as próprias mãos" acabou refletindo uma relação histórica de segregação que vem desde a escravidão.
"Na maior parte da Europa não existe um conceito de sociedade inimiga, como no Brasil. É impressionante ver como o povo brasileiro vive de forma altamente segmentada, apesar de todos os avanços dos últimos anos", opina o historiador alemão Dawid Bartelt, diretor da Fundação Heinrich Böll (ligada ao Partido Verde da Alemanha) no Brasil.
Para ele, a retaliação privada não é uma forma aceitável de se lidar com problemas sociais, como a violência. Ele afirma que as reações de ódio como essas são perigosas e evidenciam que parte da população não compreende que a pobreza e a violência são resultado de injustiças estruturais.
Deformação social
Para seus defensores, o justiçamento – o ato de punir com a morte ou o suplício – é uma saída legítima para preencher uma lacuna deixada pelo Estado. Para seus detratores, uma violação dos direitos humanos e um atentado ao Estado de Direito, um fruto da mesma deformação social que levou ao surgimento de milícias e esquadrões da morte no Rio, que igualmente colaboram para o aumento da violência.
"A segurança pública não é uma forma de vingança. O grande problema é que não se acredita em qualquer reabilitação promovida pelo sistema penitenciário brasileiro. O grande descrédito nas instituições gera esse tipo de atitude", afirma o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
O relatório Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil mostra que assassinatos são a principal causa de morte de jovens negros e do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, que moram nas periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos.
A psicóloga Miriam Debieux Rosa, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Universidade de São Paulo (USP), diz que, pelo histórico de exclusão social do país, os atos de justiçamento acabam sendo dirigidos ao jovem da periferia, a quem é atribuída grande parte da culpa pela insegurança pública.
"O que existe é uma relação histórica de segregação que vem desde a escravidão: pessoas são deixadas à margem das oportunidades e não são vistas como pertencentes ao campo social", afirma. "O problema da violência é estrutural e complexo e transcende a busca de um inimigo."
Bartelt argumenta que a classe média no Brasil não tem nenhum projeto de solidariedade para com a parcela pobre da população. "A violência forte, em massa, quem sofre são justamente os moradores da periferia, os mesmos que estão sendo sumariamente criminalizados por esse tipo de discurso", analisa o historiador alemão.
Punição por ouvir dizer
A ação de grupos de justiceiros é passível de punição. A Polícia Civil do Rio de Janeiro instaurou um inquérito para apurar o crime de lesão corporal praticado contra o adolescente que foi preso ao poste no Flamengo e tenta localizar câmeras de segurança que possam ajudar a identificar os autores do ataque.
"O perigo é esses casos se multiplicarem e, para isso, as autoridades de segurança pública devem agir com muito rigor e rapidez", defende a coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, Julita Lemgruber, que já foi diretora do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.
Quanto ao direito do cidadão de reagir a um ato criminoso, a legislação brasileira prevê a legítima defesa – mas isso não contempla casos de linchamento e justiçamento. "A partir do momento em que o criminoso já foi controlado de alguma forma, não é admissível que as pessoas passem a praticar violência e tortura. Quando isso acontece, elas estão se igualando aos criminosos e são tão culpadas quanto eles", explica Alves.
Debieux critica o comentário sobre o episódio feito por Rachel Sheherazade. Em horário nobre, a apresentadora do SBT disse que a atitude dos vingadores é "até compreensível" diante de um Estado "omisso" e que o "contra-ataque aos bandidos" é uma atitude de "legítima defesa coletiva".
"A forma como o caso foi apresentado pela jornalista alimenta o ódio em relação a esses jovens. E boa parte da população concorda com isso. Órgãos de imprensa simulam essa leitura e não fazem uma reflexão séria. Esse é um problema de atraso na agenda de qualquer país que se diga civilizado", avalia Debieux.
Quem manifesta opinião favorável ao justiçamento também está sujeito a punição. O Código Penal prevê detenção de três a seis meses, ou multa, por incitação ao crime e apologia ao crime ou ao criminoso, inclusive em meios de comunicação e redes sociais.
Mais injustiças
Castro Alves argumenta que os "justiceiros" fazem um julgamento genérico e arbitrário de quem seria um potencial criminoso. Segundo o advogado, isso abre margem para ainda mais injustiças.
"Se até cumprindo todos os procedimentos legais, com direito de defesa, pessoas são penalizadas injustamente no Brasil, imagine num julgamento sumário baseado no ‘ouvi dizer'. Num dia, a vítima pode ser um criminoso, no outro, um suspeito e, no outro, pode ser qualquer um de nós, inclusive por motivos políticos ou ideológicos", alerta.
O advogado defende que quem pratica ou apoia atos de justiçamento por querer justiça deveria se empenhar pelo fortalecimento das instituições democráticas. "Eles deveriam lutar por uma polícia bem equipada e remunerada, sem corrupção e cumpridora das leis, por uma Justiça menos morosa e por um sistema prisional e de recuperação de adolescentes que efetivamente reeduque e reabilite as pessoas."
Para o diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque, a sociedade brasileira precisa escolher entre avançar no desenvolvimento do Estado de Direito ou seguir o caminho da barbárie. "A 'justiça com as próprias mãos' apenas alimenta o ciclo de banalização da vida", opina.