Berlinale
20 de fevereiro de 2011Qualquer rota que se percorra por entre 385 filmes no espaço de dez dias tem, inevitavelmente, algo de acidental. Salvo, claro, para quem esteja perseguindo uma meta profissional inabalável: acompanhar aquela seção, cobrir as produções daquela nacionalidade etc. Para os demais mortais sequiosos de descobertas, um festival internacional de cinema como o de Berlim é um verdadeiro "jardim das veredas que se bifurcam".
O traçado das escolhas e exclusões é, de início, errático, ditado por certas informações, sólidas ou esparsas, predileções pessoais de diretor, ator ou temática, intuições. Mas à medida que o evento progride, tão importante quanto os comentários da imprensa torna-se a rede de dicas entre os espectadores: "Você tem que assistir aquele","nem perca seu tempo com esse", "esse aí é candidato forte".
Assim, formam-se consensos e ortodoxias, e está aberto o caminho para certos patinhos feios alcançarem uma espécie de estrelato interno instantâneo.
Cinemas lotados
Mesmo compreendendo esse mecanismo, a sede de cinema dos frequentadores da Berlinale tem algo de miraculoso. Senão, como explicar a enorme afluência à quinta apresentação de Submarine, o longa de estreia do comediante inglês Richard Ayoade, no penúltimo dia do festival, um gélido sábado, às 11 horas da manhã?
A maravilha é ainda maior, considerando-se que a sala de 500 lugares é apenas uma das dezenas "recrutadas" em Berlim para o Festival Internacional de Cinema, boa parte das quais provavelmente também lotadas naquele momento, e no decorrer de todo o dia.
Em tempo: o público madrugador tinha razão. Baseado num romance de Joe Dunthorne, Submarine é uma obra deliciosa, ostentando um roteiro preciso e inventivo, atuações cativantes, equilíbrio entre ironia e carinho pelas fraquezas humanas, e, de quebra, domínio tranquilo de uma ampla palheta de recursos estilísticos.
Direitos humanos em tons diversos
Fiel à sua tradição política, a Berlinale transcorreu de 10 a 20 de fevereiro de 2011 sob o signo da luta pelos direitos humanos. Um de seus jurados, o diretor iraniano Jafar Panahi, primou pela ausência, pois encontra-se preso em seu país por motivos políticos.
Logo no segundo dia do festival, diversos participantes, entre eles o brasileiro José Padilha (Tropa de elite 2), expressaram em passeata sua solidariedade com Panahi. A queda de 30 anos de ditadura no Egito, pouco mais tarde, também ressoou na mostra cinematográfica, diluindo um tanto as fronteiras entre ficção, festival e o grande mundo lá fora.
O vencedor do Urso de Ouro, Jodaeiye Nader az Simin (Nader e Simin – Uma Separação) aborda a problemática dos direitos humanos de uma forma extremamente sutil. Ao acompanhar as tentativas do casal protagonista de se divorciar, o também iraniano Asghar Farhadi vai esboçando o retrato cada vez mais labiríntico de um país dilacerado entre o velho e o novo, o secular e o religioso, a fuga e a resistência, sufocado pela burocracia e a arbitrariedade dos funcionários públicos. Melodrama contido, sua trama psicologicamente inteligente acaba funcionando como alegoria de toda uma sociedade – em especial, graças à atuação magistral de seu elenco.
Na Macedônia, na Tchetchênia...
A metáfora também foi a forma preferida por Milcho Manchevski para falar da arbitrariedade dos órgãos públicos na Macedônia. Majki (Mães) é um tríptico que transita da ficção ao documentário. No curta inicial, duas garotas carentes de atenção denunciam à polícia um tarado exibicionista que jamais viram. No segundo, uma equipe de filmagem fictícia viaja até os confins rurais do país, à busca de mitos nacionais. A parte final documenta a absurda investigação de uma série real de crimes sexuais num lugarejo. Segundo o diretor, um dos leitmotive que unem os três filmes díspares é a natureza da verdade, "pelo menos, a verdade como ela é na Macedônia".
Em contrapartida, o documentário Barzakh aborda as violações dos direitos humanos na Tchetchênia de forma direta e contundente. Cerca de 6 mil pessoas estão desaparecidas há anos no país, presumivelmente sequestradas pelas forças russas de repressão aos separatistas. De 2006 a 2009, o lituano Mantas Kvedaravicius acompanhou um sobrevivente da prisão, um ativista dos direitos civis e famílias de desaparecidos, as quais vivem no limbo da incerteza.
Paisagens destruídas pela guerra, cruas imagens de desespero pessoal e de um dia-a-dia desolado, inimagináveis relatos de torturas (os algozes colecionavam, em colares, as orelhas cortadas dos presos), registros de embates burocráticos inúteis: tudo isso lembra, mais uma vez, a infinita capacidade humana de inventar a desgraça do próximo.
Único alívio são as inserções de tomadas subaquáticas, representando tanto o lago onde, deduz-se, os corpos dos desaparecidos se encontram, quanto Barzakh, um local mítico. Nas palavras do poeta Ibn al-Arabi: "Fronteira entre o vivo e o morto, que separa esses dois mundos, mas não é nem um, nem outro".
High tech, low tech
Em 2011, o cinema 3D fez sua estreia na Berlinale em três produções, com médio estardalhaço e, no fim das contas, sem grande repercussão. Uma advertência de que a tecnologia é vital, porém apenas um dos elementos que compõem a sétima arte.
Pois o que dita a qualidade de PINA é, definitivamente, a genialidade da obra da coreógrafa Pina Bausch, assim como o respeito com que Wim Wenders a enfocou. Em Cave of forgotten dreams (Caverna de sonhos esquecidos) a nova técnica é bem empregada, mas as inacreditáveis pinturas da Caverna de Chauvet-Pont-d'Arc, frescas e contemporâneas após 32 mil anos, são o verdadeiro foco de interesse – fora quando o diretor Werner Herzog insiste em desviar a atenção para si mesmo.
Por fim, não seria a técnica estereoscópica a resgatar do tédio a excepcionalmente morna animação em silhuetas Les contes de la nuit, de Michel Ocelot. A razão de sua inclusão na mostra competitiva foi, aliás, um dos grandes enigmas desta Berlinale.
Niilismo preto-e-branco e ética YouTube
Não só em 2D, como estático, implacavelmente minucioso e em preto-e-branco, foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri do festival: A torinói ló (O cavalo de Turim), de Béla Tarr. O cineasta húngaro acompanha o proverbial cavalo que, em 1889, Friedrich Nietzsche abraçou em lágrimas, ao vê-lo ser espancado por um cocheiro. Em seguida, o filósofo passaria seus últimos dez anos de vida mergulhado na demência.
Como numa peça de Samuel Beckett, confinados a um rude casebre, o cocheiro e sua irmã repetem dia após dia suas rotinas de sobrevivência: vestir-se, tomar uma palinka, pegar água no poço, comer batatas, dormir. No entanto, o mundo à sua volta está desaparecendo inexoravelmente: é como se o vento que varreu a mente do pensador niilista, a noite que o envolveu, tomassem conta de tudo. Com uma impopular duração de 146 minutos, essa elegia do apocalipse é cinema de autor como nos bons e velhos tempos, pousado sobre a irredutível consequência de seu roteiro e a beleza austera de suas imagens.
No extremo oposto da escala tecnológica encontra-se algo como The queen has no crown (A rainha não tem coroa), de Tomer Heymann, que combina décadas de filmes de família em gerações sucessivas de aparelhagem não-profissional, do Super-8 às atuais câmeras digitais. Porém, não é tanto a estética lo-fi que torna essa produção israelense difícil de tragar, mas antes o narcisismo do realizador.
Onipresente e penetrante, a câmera de mão de Heymann o expõe e a seus amantes, as crianças da família, os irmãos que abandonam Israel pelos EUA, para dor da mãe convalescente de câncer. Há, é claro, o avô que escapou dos nazistas, a opção sionista, o conflito árabe-israelense, os atentados. Álibis insuficientes: o resultado é mesmo um registro voyeurístico de relações abusivas, com despudor e falta de critério dignos dos adolescentes descerebrados que povoam o YouTube e similares. Antes um problema de ética, enfim.
Terrenos originais
O franco-canadense En terrains connus (Em terrenos conhecidos), por sua vez, alcança um raro equilíbrio entre fins expressivos e meios técnicos. Seus quatro protagonistas são: um rapaz que vive com o pai cardíaco e é incapaz de sequer abrir um vidro de molho de tomate, quanto mais de manter um relacionamento adulto; a irmã casada, imergindo numa crise existencial tão ameaçadora quanto invisível; e seu marido bonachão.
Cada um vai tocando a vida gentilmente absurda, em direção à catástrofe ou a coisa nenhuma. Até que um dia, deus ex machina, surge um homem vindo do futuro: "Não de muito longe, não. Daqui a uns meses. Lá para setembro".
Só mesmo o diretor Stéphane Lafleur sabe a receita dessa joia de understatement e humor. Câmera e montagem – observadoras discretas, quase minimalistas – transformam em coprotagonistas a paisagem glacial do Québec e o distanciamento das relações familiares. E recordam que o cinema pode passar muito bem sem o boom bang! e os já estereotipados efeitos digitais do mainstream.
Delicado e sarcástico, munido de um script de laconismo hilariante e de um bravo elenco, encabeçado por Francis La Haye e Fanny Mallette, Lafleur cria uma normalidade surrealista, em que o calor humano arde sob uma espessa camada de gelo e quilos de roupas. Essa joia enterrada na neve – favorita confessa do articulista – mereceu o Prêmio do Júri Ecumênico na seção Forum da 61ª Berlinale.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela