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"A linguagem é um cão": Jelinek intraduzível?

Simone de Mello14 de novembro de 2004

Nobel de literatura fala à imprensa alemã sobre as dificuldades de traduzir sua obra para outras línguas. Até na Alemanha, mais amplo espaço de recepção de sua obra ficcional, ela se sente incompreendida.

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Jelinek não irá à entrega do prêmio em Estocolmo: 'Eu morreria'Foto: dpa

"Simplesmente não sou a mais indicada para consumo de massa", observa Elfriede Jelinek, referindo-se à rápida propagação de sua obra após a aquisição do Prêmio Nobel de Literatura. Nos últimos dias, a editora Rowohlt vendeu os direitos de tradução da obra da escritora austríaca a inúmeros editores estrangeiros. Nos países anglófonos, na França e na Itália, planejam-se novas edições da obra de Jelinek. A romancista e dramaturga, que desde o anúncio da premiação declarou reiteradamente que não se sente tão merecedora do prêmio quanto outros escritores contemporâneos, como Peter Handke ou Thomas Pynchon, considera sua obra de difícil alcance internacional.

Gosto pelo experimento ― "Admiro-me ainda mais do prêmio, pois na verdade sou uma autora da província, que trabalha com uma determinada linguagem que já não dá para entender na Alemanha", aponta Jelinek sua singularidade, em entrevista ao Frankfurter Allgemeine Zeitung. Filiando-se à tradição do Grupo de Viena, propagador de uma literatura centrada no experimento lúdico com a linguagem e a sonoridade das palavras, ela considera sua obra difícil de ser traduzida: "Escrevo a partir desta tradição e tenho a sensação de que escrevo no vazio".

Buchhandel Bücher von Elfriede Jelinek
Prêmio Nobel multiplica leitores de JelinekFoto: AP

Riso para poucos ― A estranheza de seu estilo não se limita a outros idiomas. Para Jelinek, o humor e o sarcasmo de seus livros não chegaram a ser entendidos nem pelos alemães: "Isso não tem repercussão na Alemanha; as pessoas raramente riem das minhas coisas. Há alguns anos, uma resenha constatava: 'Talvez a gente sempre tenha lido esta escritora de forma equivocada, talvez ela esteja querendo ser engraçada'. De fato, é simplesmente inacreditável".

Fúria contra a Áustria ― Se a obra de Jelinek se nutre, por um lado, da especificidade da tradição austríaca, o que a move é justamente sua "fúria contra a Áustria". Isso também dificulta a compreensão de sua obra por leitores alheios aos dilemas da sociedade austríaca. Por outro lado, por mais que a Alemanha não entenda seu sarcasmo, é lá que suas críticas ao conservadorismo austríaco têm maiores chances de ser entendidas.

Pela memória histórica ― "A Alemanha tem uma espécie de história, pelo menos a antiga Alemanha Ocidental. Os aliados ficaram lá muito mais tempo do que na Áustria e assim puderam cumprir sua missão de reeducar. Nós demoramos para sair da escola primária política. A nós eles deram tudo de mão beijada e, em compensação, saímos festejando o acordo estatal por toda a parte; quem não quiser participar da festa é traidor da pátria", reclama Jelinek.

Wahlen in Österreich Jörg Haider
Radical de direita austríaco Jörg Haider, governador da Caríntia, um dos principais alvos das críticas públicas de JelinekFoto: AP

Por uma opinião pública ― "Na Alemanha Ocidental, há uma imprensa diversificada com debates incrivelmente interessantes. A Áustria tem o Kronenzeitung, que não é jornal, coisa nenhuma, mas é lido pela metade da população alfabetizada. Na Alemanha, há filósofos políticos que interferem no debate público. Nós mal temos cabeças teóricas. É por isso que os artistas têm que assumir esta função", assinala a escritora.

Contra a falocracia ― Seja pela incompreensão do humor ou de sua excessiva corrosividade crítica, Jelinek costuma ser estigmatizada na Alemanha como feminista ferina e adversária radical dos homens. A escritora não deixa margem de dúvida quanto à sua causa e explica a possível origem do radicalismo: "Quando as mulheres são cúmplices totais dos homens, deixo de me identificar com elas como mulher. (...) Quanto menos os homens se propõem a dividir seu poder exteriormente, mais as mulheres direcionam seu sofrimento para dentro. O poder feminino introvertido é opressor. Quando as mulheres são expulsas do espaço público, talvez por medo, naturalmente elas retornam como monstros, fantasmas. O que foi reprimido retorna como coisa assustadora, mais terrível ainda".

Linguagem guia ― Para Jelinek, a condição da mulher escritora se reflete numa linguagem fora do controle, em contraposição ao discurso masculino, norteado pelo autocontrole e resguardado numa posição segura: "O que escrevo não é uma linguagem normal, (...) é uma composição lingüística. Para que as coisas continuem, de algum lugar vem uma frase que eu possa utilizar, e então esta frase me empurra adiante, e assim as coisas prosseguem. Costumo dizer que a linguagem é um cão que vai arrastando a gente pela coleira, e à gente só resta acompanhar".

Buchcover: Jelinek - Gier
'Gier' (Avidez), romance de Elfriede Jelinek (2000)