As mil e uma versões
8 de outubro de 2004A literatura árabe apresentada pela maioria das editoras alemãs na Feira do Livro de Frankfurt concentra-se, em sua maior parte, na produção literária contemporânea. E, em tempos de teorias pós-coloniais, poucos pensariam em trazer à tona o velho clichê das mil e uma noites.
Mas elas estão de volta com uma nova tradução para o alemão, baseada no mais antigo manuscrito árabe disponível. Desta vez, sem as alterações e acréscimos europeus – contos adicionados por tradutores ao longo de cinco séculos de recepção, mas também sem três das mais famosas histórias. Quem poderia imaginar as Mil e Uma Noites sem as aventuras de Simbad, o marujo; Ali Babá e os 40 ladrões ou Aladim e a lâmpada maravilhosa?
Apenas 282 noites
A explicação está na própria história do texto. O diplomata francês Antoine Galland, que viajou pelo Oriente entre 1692 e 1697, recebeu de um amigo sírio, em 1701, três volumes escritos à mão contendo as histórias reunidas sob o título Mil e Uma Noites. Esse manuscrito, datado do século 15, é a mais antiga versão disponível das histórias contadas pela princesa Sherazade, provavelmente originárias da Índia e transmitidas aos árabes pelos persas há mais de mil anos.
Mas tal manuscrito, que Galland usou como base para a primeira tradução em uma língua européia, interrompia a narrativa já na 282ª noite. Foi o sucesso da publicação, há exatamente 300 anos, que o levou a incorporar em sua coleção outras fábulas árabes obtidas de diversas fontes, alterar a ordem dos contos como bem entendesse e a adequá-los ao estilo em voga entre os leitores europeus.
Entre 1704 e 1717, foram publicados na França 12 volumes das mil e uma noites, que, por sua vez, acabaram servindo de base para futuras traduções do francês ao árabe, de forma que o intelectual palestino Edward Said talvez tivesse mesmo razão ao argumentar que o Oriente nada mais seria que uma criação do Ocidente. No século 18, as Mil e Uma Noites eram a leitura predileta dos europeus, depois da Bíblia.
Versão alemã era como fábula
Na Alemanha, a tradução clássica de Enno Littmann, publicada em seis volumes entre 1921 e 1928, tinha como base a edição francesa. Littmann aproveitou para amenizar o conteúdo e adaptá-lo ao estilo das fábulas alemãs, cortando trechos de erotismo evidente.
A história ganhou uma nova dimensão em 1984, quando Muhsin Mahdi publicou uma edição crítica comentada do manuscrito utilizado por Galland. Foi essa a edição que serviu de base para a nova tradução ao alemão da especialista em cultura oriental Claudia Ott, publicada recentemente pela editora C.H.Beck de Munique e um dos destaques da Feira do Livro de Frankfurt.
Mas, por mais que a nova edição esteja livre dos puritanismos e das adaptações estilísticas dos últimos séculos, seria um erro falar em uma "verdadeira versão" ou em uma "tradução definitiva". Pois, como disse o autor, tradutor e especialista em cultura oriental Stefan Weidner no jornal Franfurter Allgemeine Zeitung, "não sabemos nem quando a história começa, nem podemos imaginar quando e como ela terminará. Com a nova edição, ela seguramente não acaba, mas começa outra vez".