Discurso de Le Pen vai de críticas à UE a elogios a Trump
24 de fevereiro de 2017A candidata de extrema direita e líder nas pesquisas eleitorais para presidente da França Marine Le Pen promoveu uma nova rejeição pública ao comércio global e à governança multilateral, defendendo a importância da identidade cultural e da independência nacional.
Em uma palestra sobre política externa em Paris, nesta quinta-feira (23/02), Le Pen criticou duramente a União Europeia (UE) e a Otan. Ela também denunciou o que chama de intromissão ocidental em países como Iraque, Síria, Líbia, Rússia e Turquia – algo, que segundo ela, aumentou a instabilidade, quebrou compromissos bilaterais e traiu os desejos do povo.
"Eu não quero promover um sistema francês ou ocidental. Eu não quero promover um sistema universal", disse Le Pen para o público repleto de repórteres, diplomatas e apoiadores em uma sala elegante de conferências na avenida dos Campos Elísios. "Pelo contrário, quero promover o respeito a culturas e povos."
O discurso de Le Pen ofereceu um contraponto à imagem mais agressiva da base do seu partido, a Frente Nacional, que carrega uma imagem de agremiação populista anti-imigrante e anti-muçulmana. A candidata afirmoun que a França sob seu governo seria um país defensor das "pessoas oprimidas, que fala para os que não têm voz e projeta algo poderoso e grandioso".
Le Pen não respondeu a nenhuma pergunta e continuou a falar calmamente mesmo depois de uma integrante do grupo Femen, nua, tentar interromper o discurso. A manifestante foi carregada, ainda gritando, para fora da sala.
Favorita nas pesquisas
Pesquisas divulgadas nesta quinta-feira confirmaram que Le Pen continua a ser a candidata favorita nesta eleição presidencial cheia de surpresas, apesar de seu envolvimento recente em um escândalo sobre o uso impróprio de verbas da União Europeia para pagar funcionários da Frente Nacional.
No entanto, quase todas as pesquisas apontam que ela deve vencer o primeiro turno das eleições presidenciais em abril, mas perder o segundo turno, previsto para ocorrer em maio.
Para Le Pen, de 48 anos, o discurso de quinta-feira foi sua segunda chance em uma semana de aprimorar suas credenciais em matéria de política externa.
Líderes europeus já manifestaram desprezo em relação à populista de direita, mas ela se saiu melhor no início da semana no Líbano, onde se encontrou com o presidente e o primeiro-ministro do país. Ela também provocou polêmica ao cancelar uma reunião com um líder muçulmano libanês depois de se recusar a usar o véu.
"Ir ao Líbano mostrou que ela pode parecer presidencial", disse Philippe Moreau Defarges, pesquisador do Instituto Francês de Relações Internacionais em Paris. Chamando a atenção para o fato de o Líbano ser uma antiga colônia francesa e possuir uma importante comunidade cristã – tema-chave para a Frente Nacional –, Moreau Defarges afirmou que a viagem "permitiu que Le Pen parecesse tanto uma patriota quanto uma cristã".
Velhos e novos temas
Em seu discurso desta quinta-feira, Le Pen abordou alguns temas conhecidos, como as críticas à União Europeia, à OTAN e ao livre comércio. Mas ela também adentrou em um novo território – ou pelo menos ofereceu novas nuances – ao descrever uma nova relação com a África, baseada em "franqueza, respeito e cooperação mútua".
No entanto, grande parte do discurso foi pouco específico. Le Pen pediu segurança ambiental sem definir o que é isso, e não abordou questões-chave, como se a França iria aderir ao acordo nuclear com Irã sob sua liderança. Também não disse se o país iria apoiar uma solução de dois Estados para o conflito entre israelenses e palestinos.
"Se você não prestar atenção aos detalhes e apenas ouvir a retórica, soa muito francês e como um legalismo muito clássico", disse Manuel Lafont Rapnouil, chefe do escritório em Paris do Conselho Europeu de Relações Exteriores, ao descrever o discurso tradicional de Le Pen.
"Se você prestar um pouco mais de atenção, trata-se de um claro afastamento do tipo de política externa desempenhada pela França desde a guerra fria", apontou.
Aumento das despesas em defesa
No tema da defesa, Le Pen reiterou sua aversão à Otan. Ela pediu uma política baseada nos interesses nacionais franceses e prometeu elevar os gastos de defesa da França para 2% do PIB – e novamente aumentar para 3% ao final do seu mandato de cinco anos.
Sobre o Oriente Médio, ela criticou os esforços ocidentais para chegar a acordos com a oposição moderada da Síria – o que, segundo ela, "ajudou a armar o 'Estado Islâmico'".
A candidata disse que cortar relações com o regime do ditador Bashar al-Assad foi "mais do que um erro" e algo que fez com que a França ficasse mais vulnerável ao terrorismo. "Quantos ataques em solo francês as relações com os serviços sírios poderiam ter evitado?", perguntou Le Pen.
Elogios a Trump
Le Pen também fez um novo apelo para aprimorar as relações com Moscou, argumentando que a Rússia foi "maltratada" tanto pela UE como pelos Estados Unidos. O cancelamento, em 2014, por parte da França, de um negócio envolvendo a venda de navios de guerra para Moscou por causa do conflito na Ucrânia, disse Le Pen, foi um exemplo inquietante.
Sem surpreender ninguém, Le Pen fez elogios ao presidente dos EUA, Donald Trump. Ela foi um das primeiras políticas estrangeiras a saudar a vitória do americano nas urnas, em novembro passado, mesmo antes de esta ser formalmente anunciada.
Criticando o ex-presidente Barack Obama pelo o que chamou de política externa fracassada no Oriente Médio e em outros lugares, Le Pen previu que o atual governo Trump vai representar "uma espécie de mudança de software que não apenas será positiva para o mundo, mas também para os Estados Unidos".
Críticas à Alemanha de Merkel
Le Pen gastou uma parte significativa de seu discurso criticando a União Europeia, elegendo a chanceler alemã Angela Merkel como alvo principal. "A concepção dessa Europa fracassada promovida por Merkel desafia a compreensão", disse.
Se eleita, Le Pen promete renegociar um novo acordo com a UE ou, se isso não der certo, pelo menos realizar um referendo sobre o "Frexit", a saída do país do bloco.
Após o Brexit no Reino Unido, a UE está sentindo o peso da onda nacionalista. Na vizinha Holanda, o político de extrema direita Geert Wilders também lidera as pesquisas para as eleições de março.
"A questão para a Alemanha é: se deve fazer disso um casus belli ou lidar com as cartas que você tem?", questionou Lafont Rapnouil. "Assim como o Brexit não era o que todos os membros da UE queriam, você tem que tirar o melhor disso tudo para ambos os lados, e não promover algum tipo de olho por olho estéril", aponta o analista.
"Será um relacionamento muito difícil e frio", afirma Moreau Defarges sobre as relações diplomáticas entre os principais líderes europeus e Le Pen. "Claro, Merkel ou Teresa May receberão Le Pen como chefe de Estado. Mas será uma grande crise europeia – um terremoto – se ela for eleita."
Postura contraditória
Le Pen também disse que reformularia as relações com a África, rompendo com o "discurso moralizante" da França em relação às suas ex-colônias e, em vez disso, se concentrando na "não interferência, que não significaria indiferença".
Ela pediu mais ajuda para o desenvolvimento, particularmente a focada na agricultura, e para manter a presença militar francesa em países como Mali, Chade e Camarões que estão todos lutando contra o terrorismo islâmico
Contudo, essa postura suscita contradições, ressalta Lafont Rapnouil. As operações africanas da França foram realizadas em cooperação com as Nações Unidas e com o apoio da UE – justamente as instituições multilaterais que Le Pen rejeita.
"Como isso funcionaria com uma política externa da Frente Nacional que não é favorável à integração da UE na defesa – e que não está interessada na ONU?", questionou.