Documentário revela universo cruel de adolescentes brasileiras
15 de fevereiro de 2006No Brasil, conta Gisela Camara, 24% das gravidezes anuais são de adolescentes até 19 anos. Os casos de mães entre 10 e 14 anos, às quais o documentário Meninas é dedicado, perfazem 0,8% das gestações no país. Em termos relativos, observa a diretora, "pode não ser muito", mas em termos absolutos "é explosivo".
"Brincando de boneca"
Um dos cuidados das diretoras do filme, exibido na mostra Panorama, do Festival de Berlim, foi o de não deixar o documentário se transformar em uma espécie de tratado institucional, do tipo que explica e contextualiza o fenômeno – crescente no Brasil – das gravidezes prematuras. Isso teria feito com que o filme ficasse "sem alma e perdesse sua essência, que é o cotidiano das meninas", justifica Sandra Werneck (Pequeno Dicionário Amoroso, Amores Possíveis, Cazuza).
O resultado, ao contrário, é um documentário que não esconde a proximidade com suas personagens e que vai alinhavando, aos poucos, um contato entre estas e o espectador. Tudo num cenário em que crianças vão se preparando para ser mães de outras crianças. "Até outro dia ela ainda chupava dedo vendo televisão", é um dos comentários que se ouve.
Ausência crônica do pai
A ausência do pai é outro tema que permeia o filme. A ausência prenunciada dos futuros pais pode ser lida no comportamento de um deles, que tem duas ex-namoradas grávidas ao mesmo tempo. E a ausência passada dos pais das próprias meninas, que são figuras ausentes no contexto familiar. Uma forma de comportamento que "faz parte da cultura das periferias há anos", observa Sandra Werneck.
A trilha sonora em determinado momento pincela: "jeito de menina, corpo de mulher". Enquanto isso, uma das protagonistas sonha em "crescer junto" com o bebê que está gerando: "A gente vai poder ir junto para os bailes".
A mistura de sonho e ingenuidade esconde, em algum lugar, a tragédia em cada uma delas. "As meninas trazem no solo uma delicadeza, mas o subsolo é trágico", conclui Sandra Werneck.
Meninas ávidas apenas por um mínimo de atenção e em busca de algum papel a ser desempenhado dentro da sociedade. Um papel que a sociedade, até aquele momento, insiste em lhes negar.
Clique na próxima página para ler a íntegra da entrevista com as diretoras Sandra Werneck e Gisela Camara, realizada durante o Festival de Cinema de Berlim.
DW-WORLD: No filme, é possível perceber uma proximidade muito grande entre a equipe e as personagens retratadas. Quanto tempo vocês trabalharam para isso? Como conseguiram documentar momentos tão íntimos, sem que ficasse clara a presença da câmera?
Sandra Werneck: Esse corpo-a-corpo com as meninas, essa proximidade do dia-a-dia, de às vezes ir até as meninas só para conversar com elas, foi um trabalho da Gisela. Isso criou a intimidade. É possível perceber que, no começo do filme, elas estão mais tímidas em relação à câmera. Depois vão ganhando uma intimidade maior e ficam mais relaxadas.
Gisela Camara: Desde o princípio, falávamos para elas: 'Esse filme deve ser quase um diário da gravidez de vocês. A gente quer saber o que, para vocês, é importante mostrar. É um filme que deveria ter, de alguma maneira, o olhar de vocês'. A Sandra falava muito: 'Imagina uma novela, um filme, o que é legal? Pensem nisso, é um filme sobre a vida de vocês'. Conversamos sobre isso e elas se abriram completamente, o que foi muito legal.
No filme, há uma ausência completa ou quase completa do elemento masculino, do pai. Essa era uma situação que vocês já conheciam antes ou vocês se surpeenderam diante disso?
Werneck: Isso é um problema brasileiro. Os pais ajudam financeiramente por um tempo, mas acabam arranjando outra mulher, engravidando outra mulher, vendo o filho às vezes. Isso já faz parte da cultura das periferias, acontece há anos.
Quando fomos procurar as meninas, pensávamos que de alguma maneira que iríamos conviver durante algum tempo com os meninos, os pais. Daqui a dois anos, se a gente retormar esse filme, quem sabe se eles ainda vão estar por lá.
No filme, é visível uma boa vontade das pessoas que trabalham no sistema público de saúde. As médicas são cordiais, as enfermeiras simpáticas, os ambientes limpos. Vocês acreditam que a presença da câmera influenciou nesse sentido?
Werneck: Quando fomos acompanhar o parto da Evelin, por exemplo, não havia roupa cirúrgica para entrar na sala. Era horrível. Muitas dessas meninas, com dores fortíssimas de parto, são simplesmente encaminhadas para outros hospitais.
Algumas já vinham do quarto hospital e não conseguiam ter o bebê. O sistema de saúde, pelo menos no Rio de Janeiro, é péssimo para a questão da maternidade. Mas não queríamos desviar nosso foco, para documentar essa situação.
Havia muitos depoimentos de médicos, muito mais do que o que se vê no filme pronto. Mas eu não quis, foi uma decisão minha. Eu achava que se você começa a colocar esses médicos explicando o contexto, localizando, você tende a fazer um filme quase institucional, um filme encomendado, sem alma, que vai explicando tanto que a essência se perde. E essa essência é, a meu ver, o cotidiano das meninas. Você não tem que explicar, é bom observar.
Talvez o mais estranho nessas meninas e em suas famílias seja um descompromisso com o futuro, com o que vem depois. Uma inconseqüência. Ao mesmo tempo, elas parecem simpáticas ao espectador. Durante o debate que sucedeu à exibição do filme em Berlim, você disse que essas meninas têm "uma delicadeza no solo, mas o subsolo é trágico". Será que isso pode ser entendido como uma parábola do próprio Brasil?
Werneck: O que se vê são meninas que estão gerando uma criança. Uma costura, outra cozinha, a outra vai comprar roupinhas de neném. É o mundo feminino da maternidade, e este mundo é delicado. O subsolo é trágico porque são meninas que deixam a escola, que não têm futuro, que vão repetir o modelo já existente. Elas não têm condições emocionais para cuidar de um filho e educá-lo.
Para mim, isso é muito trágico. Se a sociedade brasileira não pensar na educação, nesse sentido, daqui a 20 anos você vai ter de novo uma população sem educação, tendo filhos cedo, porque é o único caminho que elas encontram para criar algum papel dentro da sociedade, que é o de ser mãe. Enquanto, na verdade, existem milhões de papéis.
Uma das meninas, a Evelin, diz que gosta de dançar ao som dos tiros. A frase choca quem ouve. Esse foi um comportamento comum entre as mais de 100 adolescentes que vocês encontraram durante o trabalho de pesquisa? Ou ela foi uma exceção?
Camara: Naquele momento, ela falou isso brincando. A mãe dela tem aquele discurso: 'a Rocinha já foi muito boa de se morar, mas agora tem violência'. Todo mundo fala muito da violência, mas ela cresceu ali. Ela não tem a referência do que era a Rocinha quando ali era bom de se morar. Ela já cresceu com um traficante na esquina com fuzil. Essa é a realidade dela.
Ela afirma essa realidade como uma forma de afirmar o seu tempo. 'Não, isso aqui é bom, eu sou da Rocinha, eu gosto de morar aqui, aqui é legal, aqui tem várias coisas. As pessoas dizem que tem tiros, que é perigoso, mas não é perigoso não, porque esses tiros não me atingem.' É uma certa rebeldia juvenil.
A Evelin era uma exceção nesse sentido. Na verdade, as pessoas que moram nessas comunidades gostam muito menos dos traficantes do que quem não mora, porque elas são absolutamente reféns daquele poder paralelo que governa o lugar onde vivem.
Werneck: A Evelin acorda todo dia e passa por três caras armados. Quatro vezes por dia tem tiroteio perto da casa dela. O que ela faz com o tiro? Vai se sentir ameaçada todos os dias? Talvez ela use isso para diminuir o medo. Pode ser uma forma mais lúdica de lidar com a situação, para se defender do próprio medo.
Camara: Na verdade, é como viver em guerra. Nós simplesmente retratamos o cotidiano. O filme não era sobre a frente de batalha. Aquelas pessoas vivem em guerra. Então resta saber como é que você faz desse cotidiano de guerra algo suportável.
Falando em frente de batalha, poderia comentar a reação de um espectador no Festival em Berlim, que disse não ver violência no filme? Será que as pessoas fora do Brasil estão em busca de uma violência explícita no cinema brasileiro e quando não encontram, não se dão por satisfeitas?
Camara: Esse é um risco que corremos, quando resolvemos fazer um filme que observa. A partir do momento em que você não aponta soluções nem caminhos e tenta conduzir o espectador o mínimo possível, você corre esse risco. O filme fica aberto a interpretações, cada um interpreta como quer.
Aquela pessoa entendeu o filme de uma forma romântica, a gente vê tudo de forma chocante. Aquilo para a gente é extremamente duro, horroroso de se ouvir. Talvez ele queira ver um fuzil para poder entender que o lugar é violento.
Werneck: São percepções diferentes, mas acho que quem romantiza de alguma maneira é esse espectador, que fica na Alemanha, achando que o Brasil é uma guerrilha. Não é bem assim. Quem mora lá vive aquilo todo dia e sente tudo de forma diferente.