Confronto de torcidas reacende discussão sobre violência nos estádios
10 de dezembro de 2013A brutalidade com que se enfrentaram as torcidas do Atlético Paranaense e do time carioca Vasco da Gama na última rodada do Campeonato Brasileiro foi condenada por autoridades, imprensa, clubes, jogadores, imprensa e opinião pública, num momento em que o Brasil busca os responsáveis pelo confronto cujas imagens correram o mundo.
O violento embate reavivou as dúvidas internacionais sobre a capacidade do país de assegurar a segurança nos estádios a pouco mais de meio ano do início da Copa de 2014.
A presidente Dilma Rousseff disse em sua conta no microblog Twitter que "o país do futebol não pode seguir convivendo com a violência nos estádios". Em mensagem, ela pediu prisões em caso de violência e propôs a criação de uma comissão de torcedores para que cenas como as de domingo (08/12) "sejam coibidas".
Seis pessoas foram detidas após a briga, que paralisou a partida durante mais de uma hora e, após a retomada, acabou com a vitória do Atlético por 5 a 1 sobre o Vasco.
O violento enfrentamento de torcedores, que resultou em quatro feridos – um jovem de 19 anos, que sofreu fratura no crânio, ainda está hospitalizado – é mais um exemplo de que o país ainda não conseguiu colocar em prática as ações de prevenção e punição para casos semelhantes, segundo avalia o Procurador de Justiça José Antônio Baêta Cançado.
Para ele, brigas de torcedores são um fenômeno social registrado em outros locais do mundo. No Brasil, esta violência em ambientes esportivos é marcada pela atuação de gangues. "Determinada gangue se junta a uma torcida organizada e parte para confrontos, fenômeno típico da própria idade, da estrutura psicológica desses jovens que gostam de praticar violência entre si", afirma Cançado, que preside o Grupo Permanente de Prevenção e Combate à Violência nos Estádios do Conselho Nacional de Procuradores-gerais. O órgão atua em parceria com outras entidades na busca por soluções para a violência nos estádios.
Para a pesquisadora Heloísa Reis, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em Sociologia do Esporte, analisar as causas da violência no esporte no Brasil é uma tarefa complexa, uma vez que é preciso considerar vários fatores na "conta".
A exacerbação da masculinidade, a atuação das polícias brasileiras (que priorizam a repressão, e não a prevenção), a qualidade da educação e até mesmo as condições de transporte e moradia têm influência nesses casos, exemplifica Reis. "Isso faz com que as pessoas tenham um sentimento de frustração, que vai resultar em manifestações mais agressivas e violentas quando você junta tudo isso", explicou a especialista à DW.
Para ela, há no Brasil "um quadro de estrutura social muito caótico" que atua em um ambiente "historicamente propício para a manifestação dessa masculinidade agressiva, que é o jogo de futebol".
Cenas chocantes
A confusão do último domingo começou aos 17 minutos de jogo, quando grupos das duas torcidas começaram o confronto na arquibancada. As imagens mostram torcedores dos dois times trocando socos e pontapés e, em alguns momentos, é possível ver indivíduos encurralados sendo espancados por um grupo de rivais. Jogadores tentaram impedir que os torcedores continuassem a briga, mas a confusão tomou conta de um dos setores da arquibancada.
A CBF lamentou o fato e disse estar preparada para trabalhar para "abolir definitivamente esses episódios de selvageria dos nossos estádios". O Ministério do Esporte, por sua vez, defendeu que os responsáveis sejam identificados e que se cumpram as penas previstas no Estatuto do Torcedor.
O movimento Bom Senso Futebol Clube – grupo de jogadores que prega mudanças no futebol brasileiro – se manifestou por meio da página oficial no Facebook: "Apoiamos a tolerância zero para a violência nos estádios".
Durante as cenas de violência, a segurança do estádio era feita por uma empresa privada, contratada pelos organizadores da partida, que não conseguiu manter a separação entre as torcidas rivais. Com o início das brigas, a Polícia Militar de Santa Catarina, que fazia a segurança fora do estádio, foi chamada. Com bombas de gás e balas de borracha, policiais dispersaram os torcedores envolvidos na confusão.
Responsabilidades
As responsabilidades estão sendo apuradas, mas o governo do Estado de Santa Catarina afirmou, em nota, que a PM atuou somente fora do estádio "atendendo a uma Ação Civil Pública, por parte do Ministério Público, que propôs que o Poder Judiciário proíba a participação de policiais militares em atividades que fujam da competência constitucional da Corporação".
Por outro lado, o Ministério Público de Santa Catarina negou que tivesse repassado tal orientação. "O Ministério Público de Santa Catarina informa que não fez nenhuma recomendação ou ação que impeça a Polícia Militar de atuar no interior do estádio Arena em Joinville", disse o órgão por meio de nota.
O Procurador José Antônio Baêta Cançado esclarece que, antes de qualquer partida, os clubes envolvidos, as autoridades públicas e a organizadora da competição se reúnem para traçar a estratégia de segurança.
Mas, no fim das contas, o clube que administra o estádio (clube mandante) e a entidade organizadora da competição (CBF) respondem pela segurança. "O Estatuto do Torcedor já responsabiliza o clube mandante e até mesmo os diretores por essa decisão mal tomada", disse José Antônio Baêta, referindo-se à possível decisão que teria sido tomada na reunião de estratégia de não usar efetivo da PM dentro do estádio.
Segundo o porta-voz da polícia, Adilson Moreira, as forças da ordem intervieram com atraso porque "a segurança do jogo estava sob responsabilidade de uma empresa privada contratada pelo Atlético".
Claudete Lehmkuhl, também representante da polícia catarinense, afirmou que em novembro o tribunal local decidiu que a polícia não deveria agir nos estádios para que fosse cumprido o objetivo lucrativo de empresas privadas que passaram a atuar em eventos esportivos.
A Fifa, que promove a Copa do Mundo de Futebol no Brasil, não comentou o ocorrido, mas disse que continuava confiando no "plano integrado" entre autoridades públicas e segurança privada para garantir a segurança durante o Mundial. "A Copa das Confederações [em junho deste ano] mostrou que funciona", disse um porta-voz do órgão em Brasília.
O plano estratégico de segurança, lançado em agosto de 2012, se concentra nas principais ameaças à segurança durante a Copa: "torcedores violentos, crime organizado e ameaças terroristas". Até agora, porém, a principal preocupação com a segurança era a repetição das manifestações populares de junho, que aconteceram durante o torneio das Confederações.
Morosidade da Justiça e "legislação discriminatória"
Na visão do Procurador, a legislação atual é suficiente, o que falta é aplicá-la. "Infelizmente apesar de termos os elementos jurídicos necessários para coibir, eles não estão sendo utilizados. O que percebemos é que, quando há o tumulto, raramente pessoas são presas", lamentou.
Para ele, a combinação das acusações previstas no estatuto – como participar no tumulto – devem ser combinadas com acusações mais graves – como lesão corporal grave ou tentativa de homicídio –, em situações como as registradas em Joinville.
A partir de experiências europeias, a pesquisadora Heloísa Reis aponta que é preciso repensar os estádios para que eles tenham uma estrutura compatível com esse tipo de evento, além de aumentar a vigilância (para permitir a identificação dos envolvidos) e até mesmo prever situações de risco. Depois, segundo ela, é preciso aplicar punições severas.
Ela reconhece os avanços brasileiros, incluindo uma iniciativa pioneira da criação de Juizado do Torcedor no Estado de Pernambuco. Um dia antes do confronto, representantes de torcidas organizadas de todo o país também assinaram em São Paulo um manifesto pela paz no futebol elaborado pelo Ministério do Esporte, segundo a Agência Brasil.
Mas Heloísa Reis também aponta as falhas na segurança dos estádios no Brasil. "Há uma morosidade do Judiciário, que aumenta a sensação de impunidade, e isso é estimulante para que haja violência", explica a pesquisadora, ao classificar a legislação brasileira como "discriminatória".
"A legislação tem uma mão pesada para a pena dos indivíduos e das chamadas torcidas organizadas, e não tem essa mão tão pesada para os organizadores do espetáculo esportivo e para o próprio Estado quando seus agentes de segurança não trabalham", opina a professora.