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Entrevista com Zé Celso, Teatro Oficina – Parte 1

Augusto Valente
26 de maio de 2004

O revolucionário Uzyna Uzona de São Paulo está na Alemanha, apresentando "Os Sertões". Seu diretor e "chefe de terreiro" falou à DW de carnaval, Nietzsche, "dessublimação", deus e o mundo... E de teatro!

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O diretor interpretando Antônio ConselheiroFoto: presse

No galpão da mina Auguste Victoria, em Recklinghausen, começou a trajetória internacional do Teat(r)o Oficina. Este é seu quarto avatar, o Uzyna Uzona, e seu guru continua sendo José Celso Martinez Corrêa, co-fundador do Oficina original, em 1958, mentor do tropicalismo e agitador político-religioso-social.

O lendário homem de teatro concedeu entrevista à DW-WORLD no domingo, 23 de maio de 2004, poucas horas antes do primeiro ensaio aberto da quarta parte do ciclo de Os Sertões, A Luta.

As quatro fases do Oficina

DW-WORLD: Zé Celso, esta é primeira vez que o novo Teatro Oficina – o Uzyna Uzona – sai do Brasil...

Zé Celso: O novo, sim. O antigo viajou bastante, inclusive na França, na época da Revolução de Maio, e aprontou bastante lá, foi um sucesso, esteve na Itália, a gente viajava pela América Latina. Mas este quarto Oficina, é a primeira vez.

O primeiro era considerado "a época de ouro". (Mas agora estamos na época do ouro do ouro!) Depois teve a segunda fase, subterrânea, onde estivemos em Portugal, Moçambique, África, vários lugares. A terceira é o retorno ao Brasil, a reconstrução do teatro, os dez anos de abertura do repertório da "tragicomediorgia". E agora a quarta, a dos Sertões, que é quando a gente se abre para o bairro, para as crianças do bairro, e faz um trabalho com 100 pessoas.

Esta é a fase mais rica e mais ambiciosa. Os Sertões é uma obra imensa. Por enquanto fizemos A Terra, O Homem, hoje vamos apresentar o ensaio geral da primeira expedição, temos ainda a segunda e a terceira, juntas vão compor um espetáculo. Depois a quarta, que deve dar mais dois espetáculos. Ao todo, a gente vai ter umas 50 horas de peça, a gente é Guinness, certamente!

A equipe em criação coletiva

Com todo o trabalho de precisão que há em cena – de corpo, voz, coreografias, declamação coral, números musicais, técnica – como é a estrutura de ensaios do Oficina? Certamente há especialistas para cada área? Ou você faz tudo?

Não, tem toda uma equipe. Por exemplo, a Letícia Coura, uma das cantoras, que trabalha a voz, o maestro Marcelo Pellegrini, que dirige a banda, a Elisete Jeremias, que faz a direção de cena. Tem o Marcelo Drummond, que co-dirige comigo, é o mais antigo, e o primeiro ator da companhia. Tem os dramaturgos, o pessoal do vídeo, da luz, preparação coral, as crianças têm os professores de capoeira e de circo... enfim, tem muita gente.

São 100 pessoas trabalhando, e elas foram ganhando uma autonomia. Eu faço realmente o papel da estimulação e da coordenação dos desejos, em função de uma criação coletiva. Primeiro há uma improvisação, depois vamos para a dramaturgia, ela retorna a todas as áreas, e nós tentamos fazer um ensaio juntos, todos. Tudo ao mesmo tempo: luz, vídeo, música, dança.

Os Sertões: uma universidade

É muito difícil, ainda, nós estamos praticamente no bê-á-bá. Eu quero evoluir muito mais, inclusive, na parte virtual, porque no Brasil as condições econômicas não permitem ter o que nós precisaríamos. Mas pretendemos desenvolver uma ópera do carnaval, como eu chamo, a "tragicomediorgia", muito com a realidade atual do teatro – quer dizer, a atuação –, e com a virtual também – de que eu gosto muito.

E estamos caminhando também para expandir, e fazer um teatro de estádio. E uma universidade popular de cultura brasileira orgiástica, que já começou com a leitura dos Sertões. Desde 2000, nós lemos o livro inteiro com 200 pessoas.

Porque ele em si é uma universidade: quem lê Os Sertões sai formado, é como se fizesse uma universidade. Então, até as crianças leem, a maior parte leu, 90 por cento. E nessa leitura e releitura – e é um livro que trata de tudo, geologia, poesia, literatura, história –, nós temos uma interpretação nova dos Sertões, produzindo um saber que nós queremos divulgar.

Replicando o Oficina em Recklinghausen

Como está sendo esta temporada na Alemanha?

Ruhrfestspiele Spielstätte Eisenlagerhalle Auguste Victoria
Mina Auguste Victoria, em cujo interior o Oficina foi reconstruídoFoto: Ruhrfestspiele

Estamos aqui há duas semanas, uma para preparar, esta outra de apresentação. E foi muito puxado, tivemos que nos adaptar ao lugar [a antiga mina Auguste Victoria], que tem uma acústica muito difícil. Mas que é muito bonito, eles fizeram uma coisa gloriosa!

Nós o estamos inaugurando, até gostaríamos que permanecesse, porque é muito lindo. Gostaríamos muito que também abrissem as minas, para poder atuar embaixo, tudo.

Eles tentaram reproduzir o Oficina, que é um teatro único no mundo. Como Bayreuth: assim como o Wagner fez um teatro para a ópera dele, o Oficina foi feito para esse nosso repertório. Só que ainda precisa se ampliar, tem que chegar no [teatro-]estádio.

Porque no final da terceira parte dos Sertões, A Luta, eu suponho um anfiteatro como Euclides da Cunha descreve; quando os militares cercam Canudos inteiro, ficam contemplando com o binóculo, e os sertanejos estão no centro, atacando em todos os flancos.

Inovando o teatro na Alemanha

O trabalho com os alemães está sendo maravilhoso. Os técnicos alemães ficaram conosco, na primeira semana, todos os dias até as 6h da manhã. Criaram uma grande amizade. Tanto que ontem, nós os chamamos para os agradecimentos. Todos eles se apaixonaram pela maluquice, pela extravagância do acontecimento!

Este festival era mais da província, do Estado da Renânia do Norte-Vestfália. É a primeira vez que o Frank Castorf, de Berlim, o está dirigindo e tentando trazer inovações para cá. Entre elas, tiveram a coragem de nos trazer, 60 pessoas. É monumental! Só a Alemanha – que é o país do mundo onde há mais valorização do teatro – faria isso.

Mas eu tenho a impressão que outros países vão imitar. Nós vamos para Paris, para o Festival de Avignon, eu acho. Vamos para Londres. Mas aí a gente vai com Ham-let, numa grande exposição sobre o Tropicalismo. Isso está em negociação.

O medo alemão da insegurança

Vocês não puderam trazer todas as crianças do Oficina e trabalharam com as de Recklinghausen. Como foi o workshop com elas?

Foi feito pelo ator José de Paiva. Ele se apaixonou pelas crianças, e elas por ele. Elas não tinham experiência nenhuma, ele trabalhou bastante. Elas aparecem em cenas de O Homem 1 e O Homem 2. Enfim, você vê que não têm a experiência dos brasileiros, porque estes são meninos de rua, que já têm aquela agilidade, aquela capoeira, os saltos, os pulos.

Mas as crianças daqui se iniciaram, enfim, cuspiram fogo. O que é uma glória aqui na Alemanha! Porque a Alemanha tem todo um pavor da insegurança. Nós tivemos um problema muito grande com os fogos. Por exemplo, não pudemos colocar chão de pólvora no terreiro, teve que ser aquela estrelinha.

Nietzsche mesmo fala nisso, que é uma cultura muito baseada na segurança, tudo é inseguro. Ele até reclama, "puxa, mas não deve ter muita alegria, uma cultura que corta as arestas perigosas da vida, que não arrisca nada". Mas eu tenho a impressão de que nós conseguimos ir ao limite, eles fizeram o máximo que puderam. Tanto que quem acendeu a vela do espetáculo do primeiro dia foi o chefe do Corpo de Bombeiros.

Devorando um carvoeiro alemão

Vocês têm um ator alemão.

Temos, o Wolfgang, maravilhoso! É um achado. Parece que foi programado a gente vir à Alemanha, ele fazendo o bispo Sardinha. Em princípio, deveria ser um português, mas era necessário, sobretudo, que fosse um estrangeiro. (Porque o português, para o índio, é o estrangeiro, claro.) E foi maravilhoso vê-lo aqui, falando alemão, os índios realmente não entendendo nada, e o devorando.

O Wolfgang é o nosso tradutor também, ele entende muito o grupo. E é da região, inclusive, trabalhou em minas de carvão, o pai dele também. Tanto que, no primeiro dia, ele saiu do subterrâneo vestido com aquelas roupas de carvoeiro. (Aliás é branca a roupa, que loucura! Mas é uma roupa de festa, parece...)

Nietzsche é seu guia

E a sua relação com a cultura alemã? Você cita Friedrich Nietzsche com freqüência.

Tenho uma influência muito grande do Nietzsche. O Caetano [Veloso] ficou muito entusiasmado com o espetáculo, foi exagerado, claro, disse: "Essa é Wagner!". Mas acho que é mais um Wagner de que o Nietzsche gostaria. Porque ele gostava muito da Carmen [de Georges Bizet, 1875], e queria que a ópera seguisse por um caminho mediterrâneo, até africano.

Eu trouxe aqui a de Aurora, do Nietzsche – numa tradução maravilhosa do Paulo César de Souza –, que parece que foi escrita para eu entender a Alemanha agora, hoje. E não só a Alemanha, como o poder, o PODER que existe na arte, o poder que tem o ser humano enfim. Eu adoro Nietzsche, sou apaixonado.

Ele foi muito deturpado pela irmã, pelo Hitler. Mas Aurora tem um elogio enorme aos judeus: ele tinha uma admiração muito grande por eles, no sentido de que resistiram séculos e séculos no Ocidente, conseguindo criar uma cultura crítica importantíssima. Achava que um dia os judeus se libertariam totalmente do sentimento de vingança, e seriam os criadores de uma Europa unificada. Ele tinha essa ilusão.

Nazismo-stalinismo e a ordem liberal

E a Alemanha pós-Nietzsche? O nazismo ocupa você?

Ocupa, sim. Tanto o nazismo como o stalinismo – porque a Alemanha viveu as duas experiências – criaram no povo alemão um recalque, um medo muito grande da emoção, da "tempestade do ardor irresistível" [Sturm und Drang, movimento do século 18]. O que acho que o nazismo fez, foi utilizar a emoção, mas militarizá-la, geometrizá-la, colocá-la a serviço dos sentimentos pequeno-burgueses, os mais vulgares, os mais torpes.

Você vê nos filmes da Leni Riefenstahl: as cerimônias nazistas são, todas elas, absolutamente retas, quadradas, matemáticas. Não se compara com o Carnaval da Bahia, mesmo com o Carnaval da escola de samba. As multidões podem criar também... os seres humanos podem liberar as emoções, sem necessariamente cair nem no nazismo nem no stalinismo.

Tanto um como outro utilizam a emoção das massas e a canalizam. Como a própria ordem liberal, que coloca tudo em função do dinheiro e do marketing. Só que é um nazismo APARENTEMENTE mais light. Nós vivemos numa sociedade stalinista e nazista, sob a ditadura brutal do capital financeiro, que utiliza, que compra também a vida privada das pessoas.

"Dessublimando" os subterrâneos germânicos

Eu acho que aqui na Alemanha nós estamos sendo gostados por tentar tocar nos subterrâneos, nas minas. É por isso que queremos muito que as minas daqui sejam abertas.

Porque não é preciso fazer como o Freud queria, recalcar o inconsciente: tem que soltar o inconsciente! Não tem que sublimar, é preciso "dessublimar"! E dessublimação não tem nada a ver com nazismo nem com o stalinismo, ela é o fracasso deles.

O nosso tradutor mesmo, o Berthold Zilly, que é um amor de pessoa: ele é muito receoso, acha que não se pode tocar no tema do racismo, fica impressionado com aquela cena onde se matam as crianças, traduziu sob protesto, entre parênteses. É o julgamento moral, de que o Nietzsche falava, ele é muito violento. No nazismo e no stalinismo ele aumentou muito ainda.

Teatro como lugar de potência

Bertholt Brecht
Bertolt Brecht, referência para Zé CelsoFoto: AP

Acho que é necessário o teatro alemão – que é tão poderoso – se libertar, retornar ao [Bertolt] Brecht da primeira fase, que é tão maravilhoso. O Brecht de Baal, de Na selva das cidades, que foi um dos meus melhores espetáculos. Enfim, o Brecht poeta mesmo.

Não, aquela coisa de afastamento [Verfremdungseffekt, ou distanciamento crítico]... Eu acho que o público não vai ao teatro para refletir. Acredito que Marx e Nietzsche se dêem muito bem, no Brasil eles se namoram, se adoram. Pelo menos no Oficina.

Porque acho que o público vai ao teatro em busca de potência. Ele é um lugar de poder humano. E o maior poder está na libido dessublimada, como o William Reich dizia. Acho que o teatro é a casa do poder, aonde a sociedade vai para adquirir poder, não para racionalizar, para ficar de pé atrás. É muito chato isso.

"Soltar a franga" é política

Como você consegue de seus atores essa entrega total que se vê no palco?

É uma tendência que as pessoas têm. Elas querem se dar, "soltar a franga", sair dos seus limites. A própria tragédia grega acontece quando há hybris, quando você ultrapassa o limite. O limite de tempo, por exemplo, essa coisa do espetáculo de uma hora e meia, da agenda.

Só quando você sai da agenda é que começa a descobrir a riqueza que o ser humano tem. Principalmente na ordem liberal, que é muito avarenta para com o ser humano, em que ele é transformado numa idéia única de homem, que é assim, assado, é o consumidor.

Então se tem uma idéia preconceituosa de homem, extremamente massacradora do potencial criador. Quando você acena para as pessoas libertarem os seus desejos, eu sinto que é uma atitude política muito forte, hoje.

Cultura libertária brasileira...

As pessoas estão querendo soltar a franga, no mundo inteiro. No Brasil é mais fácil, pois tem uma multidão de excluídos que tenta se virar. Aliás, essa multidão é responsável pela sobrevivência do Brasil. Como diz o Caetano Veloso, o povo ainda mantém viva essa cultura libertária. O povão brasileiro é completamente amoral: tanto que ele rouba, mata, pede esmolas, ele faz tudo para sobreviver, se organiza no crime organizado...

Ele não tem moral, apesar de a Igreja tentar conduzir os movimentos políticos de maneira a não irem tão longe quanto poderiam, porque ela segura um pouco no catolicismo.

Eu acho que liberação sexual, inclusive no Brasil, diminuiria demais a violência. Assim como a descriminalização das drogas. Porque o marginal é obrigado a ter uma atitude muito machista.

Mesmo essas crianças, quando elas começaram a entrar, os companheiros de rua disseram: "Vocês vão virar veados, vão dar a bunda, vão ficar pelados!" E na Febem, no Brasil, eles são tratados com muita violência. Se a Febem tivesse um tratamento como nós damos no Teatro Oficina, um tratamento libertário, a situação seria diferente.

... antídoto contra o puritanismo do capital

Acho que o mundo é dominado por uma cultura puritana. A cultura do DINHEIRO é puritana, do bem e do mal. Tenho a impressão de que todos os povos do mundo são libertários, o ser humano em si é libertário. Agora, ele recebe uma educação violentamente autoritária, puritana, dividida em bem e mal. É por isso que o Nietzsche é tão importante: Além do bem e do mal.

É por isso que o Noel Rosa, o próprio Euclides da Cunha, Oswald de Andrade, Glauber Rocha, o Gilberto Freyre, a poesia, a literatura brasileira, o candomblé... É uma cultura libertária, ela tem em si uma política muito mais importante do que muito do que veio do Capital, do marxismo, do Kennedy, dos americanos, do monetarismo.

Nós temos uma cultura libertária mais ou menos definida, e é uma riqueza nossa que vai se transformar em política, e pode ser muito boa para os outros povos todos. Para o povo chinês, que sofre muita repressão, mas acredito que seja muito sem-vergonha, também. Como o povo russo é muito sem-vergonha, muito religioso. O alemão, depois que bebe, solta a franga mesmo. Eu acho que é uma questão de transmutação de valor, aí.

Zé Celso discorre ainda sobre outros assuntos, nesta entrevista concedida a Augusto Valente. Para continuar a leitura, clique no link abaixo.