“Filhos do Estado Islâmico" podem voltar para Europa?
30 de março de 2018Milhares de crianças deixadas para trás por combatentes ocidentais do "Estado Islâmico" (EI) vivem atualmente num limbo, presas com suas mães em cárceres iraquianos ou sírios, enquanto políticos dos países de origem debatem se existe alguma obrigação de trazê-las de volta para casa.
Enquanto avós na Holanda e na Bélgica exigem o retorno das crianças, como cidadãs desses países, os governos locais vão protelando. As autoridades afirmam que os menores são potencialmente perigosos, e que permitir a reunião com os avós pode encorajar os pais a voltarem para casa.
Os órgãos de segurança alemães e holandeses emitiram alertas sobre o potencial perigo representado por essas crianças. O chefe do Departamento de Proteção à Constituição da Alemanha (BfV), Hans-Georg Maassen, disse considerá-las perigosas, tendo sofrido lavagem cerebral durante processos de radicalização em "escolas" do EI. Para a agência de segurança holandesa AIVD, elas foram doutrinadas que "qualquer um que não acate a interpretação correta do islã deve ser morto".
Filhos do EI
Calcula-se que cerca de 5 mil europeus tenham viajado para a Síria e o Iraque a fim de se juntarem ao EI. Não está claro quantas crianças são atualmente afetadas, mas há indícios de que a maior parte delas nasceu no autoproclamado califado do EI. Meninos com mais de nove anos, o grupo que recebeu treinamento, seriam apenas 10% dos menores com laços ocidentais.
Avós de filhos de integrantes europeias do EI apontam que a maioria deles possui nacionalidade ocidental, devendo ser considerada cidadã dos Estados de origem dos seus pais, e que eles não devem ser punidas pelas decisões dos genitores. No entanto, a maioria dos países ainda se recusa a garantir ativamente o retorno dos menores de idade.
Principal foco de temores são os garotos, os assim chamados "filhotes de leão", que as forças do EI treinaram em campos especiais para formar uma futura geração de combatentes. Vídeos de propaganda do EI mostram alguns deles treinando e executando "infiéis” e combatentes adversários.
Um yazidi entre jihadistas
Ayhem, de sete anos, apareceu num desses vídeos de propaganda, junto com seu melhor amigo, Yousef. O menino yazidi foi sequestrado pelo EI em agosto de 2014 e colocado sob a guarda da mãe de Yousef, uma americana chamada Sam, e de seu marido marroquino.
A mulher, conhecida no califado como Oum Yousef, ensinou árabe e inglês a Ayhem, que esqueceu o idioma materno. Agora, libertado e sob os cuidados de seu tio Tahsin, no Curdistão iraquiano, recusa-se a falar qualquer língua além de inglês, e deseja ir para os EUA.
Está claro que Ayhem sente falta da americana que cuidou dele por três anos em Raqqa, assegurando-se que não se esquecesse dos nomes yazidi de sua mãe nem de seu local de nascença. Quando os curdos sírios capturaram Raqqa, Oum Yousef foi levada a um campo de prisioneiros para mulheres e crianças do EI. Lá, garantiu que Ayhem fosse identificado como yazidi, para ele poder se reunir a sua família.
Doutrinação fundamentalista
A experiência de ser sequestrado e a perda da "mãe americana" deixaram Ayhem em estado de confusão. Em vez de reaprender curdo, ele agora quer ir para um lugar onde possa falar inglês. Em consequência, parece solitário e ainda sofre com os pesadelos começados com os ataques da coalizão anti-EI perto de sua casa, em Raqqa.
Assim como todas as crianças do EI, ele foi doutrinado para acreditar que o islã é a única fé e que os "infiéis" – especialmente seu próprio povo, os yazidis – devem ser mortos. Indagado se deseja mesmo isso, porém, ele dá de ombros e diz: "Não, claro que não." O tio mostra compaixão por Ayhem e não o considera um perigo.
Outros meninos yazidis salvos do cativeiro do EI tiveram problemas de adaptação, alguns continuaram com suas orações muçulmanas diárias por algum tempo. Quando jornalistas estrangeiros encontraram um menino repetindo propaganda do EI sem cessar, informaram aos agentes humanitários que ele precisava de ajuda.
Uma das organizações que oferece apoio e desenvolve um programa de desradicalização para os meninos mais velhos, é a Fundação SEED, sediada em Irbil, capital do Curdistão. Entre outros, ela ajuda meninos que estavam em campos de treinamento do EI.
Questionado se os garotos representam um perigo para a sociedade, como parecem acreditar os governos ocidentais, o diretor da seção de gestão de casos, Zaid Abdulla, discorda: "O episódio mais violento que vi até agora foi de um menino que quebrou as janelas com o punho." Ele não conhece um único caso de crianças atacando ou xingando outras de infiéis.
"Os garotos que estamos vendo já descartaram as ideias que foram impingidas a eles", diz Abdulla, acrescentando que crianças são como esponjas, "capazes de captar novas ideias e de se adaptar a novas situações".
Necessidade de aceitação
No entanto as vivências não passaram sem deixar sequelas. Os sintomas de Ayhem são familiares para terapeutas como a psicóloga clínica do SEED, Yusra al-Kailani, que a eles acrescenta flashbacks, ataques de raiva, enurese noturna e transtorno desafiador opositivo. "Toda criança é diferente", enfatiza.
Os terapeutas dizem que também precisam da ajuda dos responsáveis – dos avós, tios ou tias. "Eles têm que estar prontos para receber a criança e saber como reagir", diz Abdulla. A psicóloga Kailani frisa a necessidade de eliminar o estigma, a crença de que, se as crianças estavam com o EI, são perigosas. Caso contrário, elas podem se isolar e reverter ao que lhes foi ensinado, o que no longo prazo poderá acarretar mais extremismo e violência.
Em relação aos filhos de combatentes estrangeiros do EI, os agentes humanitários do SEED estão do lado dos avós no Ocidente, que querem recebê-los, para dar-lhes a chance de recuperar uma vida normal. "Isso permitirá às crianças escolher seu próprio caminho", diz Yusra al-Kailani. "Se ficarem com os pais, elas seguirão o exemplo deles. No Ocidente, haverá problemas e desafios e elas precisarão de apoio, mas suas perspectivas serão muito melhores."
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