Os soldados brasileiros de Hitler
6 de novembro de 2007Em Os Soldados Brasileiros de Hitler, o professor Dennison de Oliveira entrevistou diversos cidadãos brasileiros de ascendência alemã que lutaram pela Alemanha de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo o estudo sobre cidadania e nacionalidade entre teuto-brasileiros, cerca de 3 mil brasileiros residentes na Alemanha durante a Segunda Guerra foram repatriados até o primeiro semestre de 1949.
Acredita-se que o número dos soldados brasileiros que lutaram pela Alemanha nazista pode chegar a várias centenas. Sobre o assunto, DW-WORLD entrevistou o professor da UFPR.
DW-WORLD: Quem foram os soldados brasileiros de Hitler?
Dennison de Oliveira: Tratava-se de filhos de famílias alemãs nascidos no Brasil. Alguns destes indivíduos retornaram à Alemanha para estudar ou trabalhar, geralmente com suas famílias. Com a eclosão da guerra viram-se impossibilitados de retornar ao Brasil. Ao atingirem a idade de recrutamento foram convocados pelas Forças Armadas Alemãs e engajados em combate na Segunda Guerra Mundial.
O senhor tem uma idéia de quantos soldados nascidos no Brasil lutaram pela Alemanha nazista?
Hoje é impossível determinar exatamente quantos indivíduos passaram por esta experiência, mas o número seguramente atingiu muitas centenas.
Houve soldados alemães de Vargas?
Com certeza. No Brasil a conjuntura anterior à guerra é marcada pela campanha oficial de combate aos "quistos" de estrangeiros "inassimiláveis" à cultura brasileira, dentro do projeto de nacionalização compulsória que o regime Vargas (1930–45) adotou. Uma das dimensões dessa nacionalização forçada foi o recrutamento deliberado de descendentes de alemães para as nossas Forças Armadas, tidas como reduto das virtudes cívicas e patrióticas nacionais.
Contudo, houve casos recorrentes de indivíduos de ascendência alemã que se alistaram como voluntários para lutar em nosso exército na Segunda Guerra Mundial, no intuito deliberado de provar que eram "verdadeiros" brasileiros. Afinal de contas, o lema oficial da campanha de nacionalização era "quem nasce no Brasil ou é patriota ou é traidor". É significativo que os dois maiores heróis da Força Expedicionária Brasileira sejam justamente dois destes indivíduos: o sargento Max Wolff Filho e o tenente Ary Weber Rauen.
Existiram casos de soldados da mesma família que lutaram na Força Expedicionária Brasileira (FEB) e nas Forças Armadas Alemãs (Wehrmacht)?
Existe pelo menos um caso comprovado de família de origem alemã residente no Brasil que teve um filho que lutou no exército brasileiro e outro no exército alemão. Mas é claro que esse caso pode não ser o único.
Recente pesquisa realizada por historiadora da USP constata que o partido nazista brasileiro foi o maior do mundo fora da Alemanha. As famílias que enviaram seus filhos para lutar pela Alemanha eram filiadas ao partido de Hitler?
Entre os entrevistados que participaram de minha pesquisa não encontrei nenhum caso sequer de família filiada ao partido nazista. Contudo, os arquivos da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) sobre a ação do partido nazista apontam que havia uma ação deliberada nesse sentido. A política partidária adotada era convencer os jovens em idade de prestar o serviço militar a viajarem para a Alemanha e lá servirem às Forças Armadas Alemãs.
Antes do embarque para a Alemanha era realizado aqui no Brasil um exame médico, que atestava que o candidato estava à altura dos padrões físicos exigidos para o serviço militar na Alemanha. O estímulo para esta iniciativa residia nas possibilidades de estudo e trabalho que se abriam, a partir da prestação do serviço militar, com a plena concessão da cidadania alemã.
Por que retornar à Europa na iminência de uma guerra?
Hoje sabemos que a guerra eclodiu em setembro de 1939, mas naquela época era impossível prever se e quando isso se daria. Os indivíduos que entrevistei são quase unânimes em afirmar que suas famílias regressavam devido às inúmeras oportunidades de trabalho, estudo e ascensão social que então existiam na Alemanha.
As condições de emprego, nível de vida e paz social na Alemanha, em especial após a anexação da Áustria (Anschluss), eram particularmente atrativas. Um estímulo adicional para o retorno à Alemanha eram as notícias recebidas de familiares que lá residiam, enfatizando as vantagens de se deixar o Brasil e retornar à Europa.
Um de seus entrevistados, apelidado pelos colegas alemães de uniforme como "o americano", arriscou a própria vida ao justificar sua recusa de combater na frente italiana por não poder lutar contra seus "patrícios" brasileiros. Este sentimento de brasilidade também se encontra em outros entrevistados?
Esse caso é único, excepcional mesmo. E cabe notar que ele estava preocupado tanto com seus colegas de infância que havia deixado no Brasil quanto consigo mesmo, ao saber que seria destinado a lutar na frente italiana, para onde a Força Expedicionária Brasileira notoriamente havia sido deslocada.
Ele tinha plena consciência tanto de que podia se tornar responsável pela morte de seus antigos amigos que haviam sido recrutados pelo exército brasileiro, quanto de sofrer as represálias destinadas aos "traidores" do Brasil, se por acaso fosse capturado pelos brasileiros. Os demais engajados pelas Forças Armadas Alemãs sempre agiram e lutaram como os outros alemães.
Devido à pouca idade a maioria deles foi lançada em combate quando a guerra já estava abertamente perdida para a Alemanha. É natural que seus interesses estivessem voltados para a sobrevivência própria, de suas famílias e da Alemanha. O Brasil estava longe das suas preocupações.
Como se sucedeu a repatriação destes brasileiros após a guerra?
A repatriação se deu por iniciativa do governo brasileiro. Cabia à missão militar brasileira que funcionava em Berlim já a partir de 1945 providenciar a volta ao Brasil dos "brasileiros" residentes na Alemanha que, após a guerra, desejassem retornar. Com a Alemanha totalmente em ruínas, sob ocupação militar estrangeira e sem qualquer perspectiva de oferecer meios de vida a seus habitantes, a maioria dos que haviam sobrevivido ao conflito, bem como suas famílias, optou por retornar.
Depois de consultas e pesquisas a missão militar brasileira ficou sabendo do caráter compulsório do recrutamento para as Forças Armadas Alemãs entre os descendentes. Assim, o comando da missão, de forma acertada, evitou processar judicialmente qualquer indivíduo nascido no Brasil que tivesse combatido pela Alemanha durante a guerra.
Não tiveram problemas no Brasil?
Na volta, a maior dificuldade foi justamente o fato de eles não possuírem o certificado de cumprimento das suas obrigações militares para com as Forças Armadas brasileiras, que até hoje é um pré-requisito para o exercício da maior parte dos direitos civis. O cumprimento de penalidades leves, geralmente uma simples multa, ou o apelo ao já famoso "jeitinho" brasileiro removeram estas dificuldades.
Qual o julgamento que os seus entrevistados têm hoje da Segunda Guerra Mundial e do sistema pelo qual lutaram?
As respostas são dúbias. Alguns admitem que eram jovens, imaturos demais, para avaliarem de forma crítica o regime que, reconhecem, tinha aspectos condenáveis. Outros assumem uma atitude abertamente revisionista, rejeitando a versão dos vencedores da guerra e defendendo tanto as características positivas do regime quanto negando a responsabilidade da Alemanha pela eclosão do conflito.
O senhor acredita que a Segunda Guerra Mundial contribuiu para definir os conceitos de nacionalidade e cidadania no Brasil?
Acredito que sim, mas não só a guerra em si, como também a conjuntura mais ampla na qual ela se insere. Quando o Brasil finalmente entrou em guerra em 1942, a campanha pela nacionalização já estava praticamente concluída. Todas as entidades, organizações e movimentos responsáveis pela divulgação e preservação da língua e da cultura alemã já haviam sido inteiramente destruídos.
Com a declaração de guerra em agosto daquele ano a repressão contra os descendentes de alemães é levada a um novo auge, com incontáveis abusos e mesmo crimes sendo contra eles cometidos. Enfim, ao acabar a guerra, conseguiu-se estabelecer uma situação na qual existiam somente cidadãos "brasileiros" aqui.
A guerra acabou há mais de seis décadas e somente agora se realiza o resgate histórico da relação de cidadãos e do governo brasileiros com o nazismo. Existiria um tabu em torno do tema?
Certamente que existiu e existe um enorme tabu que, no limite, alimenta o antigermanismo, ou mesmo a germanofobia. O aparecimento destas memórias, somente agora, guarda uma relação estreita com a conjuntura histórica na qual vivemos, marcada tanto pelo fim da Guerra Fria quanto pela repercussão da Questão Palestina.
Durante a prolongada confrontação entre a antiga URSS e os EUA, incontáveis acusações mútuas foram lançadas por ambos os lados. Destas, uma das mais importantes era a "cumplicidade", "simpatia" ou "similaridade" com o antigo regime nazista.
A caracterização do governo e do povo alemães à época do nazismo como completa e absolutamente diabólicos era, então, amplamente consensual. Esse consenso foi decisivamente reforçado pelo Estado de Israel, sempre arrogando para si a condição de único refúgio possível para os judeus no caso da reaparição de algum governo dedicado ao seu extermínio.
Com o fim da Guerra Fria e o declínio do prestígio do Estado de Israel, resultado de suas políticas para com os palestinos, finalmente parecem ter surgido condições para a aparição das memórias daqueles que viveram e lutaram sob o regime nazista.
O senhor já publicou sua pesquisa?
Até agora a pesquisa foi divulgada exclusivamente no âmbito acadêmico. Apesar de o trabalho ter sido enviado para todas as grandes editoras comerciais do Brasil, nenhuma se dispôs a publicá-lo ou mesmo sequer examinar o seu conteúdo. Espero que a sua divulgação através desta entrevista amplie o leque de parceiros possíveis para uma eventual publicação.
Dennison de Oliveira, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é professor dos cursos de graduação e pós-graduação no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná e orientador de pesquisas na área de História da Secretaria Estadual da Educação do Paraná.