Pé na Praia: A lei do mais forte
6 de julho de 2016Há algum tempo encontrei o chefe de polícia de Sucundurí. Estava sentado de chinelos na beira da estrada, em seu bar favorito. Tinha uma TV chiando e, na mesa de plástico, uma lata de cerveja em sua frente. Antônio, o policial, defende a lei nesta cidade pequena e está satisfeito consigo: "Aqui não há problemas, aqui está tudo em paz". Eu, o visitante da Alemanha, estava tendo claramente problemas de compreensão com esta afirmativa. Por que então algumas pessoas andam armadas em Sucundurí? perguntei a ele. "Não, ninguém anda armado", ele diz.
Um homem na mesa ao lado se intrometeu: "Sim, eu ando armado". O chefe de polícia olhou para ele irritado. É legal ter posse de armas em Sucundurí? "Não", respondeu o chefe de polícia, "mas há situações em que as pessoas precisam de armas". Fim da entrevista com o homem da lei.
À primeira vista Antônio pode ter razão: Neste povoado pequeno, singular e fortemente armado, tudo parece estar em paz. Sucundurí tem cerca de 2000 habitantes e fica na beira de uma estrada com muito tráfego de caminhões; quase não tem lixo jogado na rua, e as casinhas de madeira são construídas e pintadas com muito esmero. Isso sempre me chama atenção, afinal sou da Alemanha. Gostamos de um pouco de ordem.
Mas, num olhar mais cuidadoso, tem muita coisa estranha por aqui!
Por exemplo, na festa da paróquia. O Pastor, um homem atarracado chamado Jamcy, veste uma camisa azul de punho branco impecável, caminha pela tenda da festa lotada e distribui apertos de mão. "O maior problema daqui é que ficamos isolados por muitas semanas nessa época de chuva", relata o Pastor. Então seria necessário rezar muito em Sucundurí e contar com a união das pessoas. Isso funciona bem. Ninguém sai do caminho em Sucundurí.
O Pastor diz que muitas pessoas vivem do Bolsa Família ou de aposentadoria e da pesca no rio. "E as meninas se casam." O próximo casamento se dará em algumas semanas. Jamcy me apresenta o casal felizardo: Jesreel und Lucilene, ela tem 14 anos e ele 29. Há quatro anos eles dormiram pela primeira vez um com o outro. "As jovens se casam novas aqui, disse o Pastor, "com 10, 11, 12 anos e então têm filhos. Aqui a cultura é assim."
Algumas vezes os noivos são negociantes de passagem ou motoristas de caminhão. Os casamentos não duram muito. Em geral eles não são registrados em cartório, o que seria difícil, pois me esclareceram que a lei vê este tipo de relacionamento com tamanha diferença de idade como estupro. Na longínqua Brasília as autoridades levam a proteção do menor muito a sério. Mas Brasília está assim: muito longe daqui.
Precisei de algum tempo para poder compreender o que acontece em Sucundurí. As pessoas que mandam querem viver como muitos no Amazonas: como melhor lhes aprouver. Querem portar armas e viver segundo a lei do mais forte, com o poder dos costumes e as regras da selva. Nesta região, instituições estatais são frequentemente nada mais que uma cortina de teatro: policiais de povoados, que fecham os olhos para muita coisa, funcionários de órgãos públicos permitem casamentos que não acontecem. E assim por diante.
O Pastor de Sucundurí dá razão ao chefe de polícia. "Aqui não tem problemas. Aqui é o lugar mais abençoado da terra, onde já pude prestar meus serviços até hoje”, diz ele. Ao partirmos, as meninas da vila acenaram para nós, dando risadinhas e flertando, em saltos altos e saias apertadas. Nenhuma delas tinha mais de 14 anos.
Thomas Fischermann é correspondente do jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Na coluna Pé na praia, publicada às quartas-feira na DW Brasil, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens pelo Brasil. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.