"Suu Kyi é um ícone, mas com arranhões"
19 de junho de 2015A Prêmio Nobel da Paz Aug San Suu Kyi faz 70 anos nesta sexta-feira (19/06). Em entrevista à DW, Hans-Bernd Zöllner, autor de biografia sobre a líder oposicionista de Mianmar, diz que sua imagem de heroína tem sofrido arranhões no cotidiano político de seu país.
Entretanto, Zöllner afirma que Suu Kyi ainda pode desempenhar um papel importante no futuro de Mianmar, colaborando para obtenção de um acordo entre correntes políticas e grupos étnicos rivais.
Deutsche Welle: Nesta sexta-feira, Aung San Suu Kyi completa 70 anos. Ela é reverenciada em todo o mundo como um símbolo da liberdade. Em sua opinião, qual é o maior mérito político dela?
Isso só será possível de dizer com exatidão em retrospectiva, ao olharmos para o passado durante o centésimo aniversário dela. Pois o processo de transformação em Mianmar, no qual ela está fortemente envolvida, ainda está longe de terminar. Poucos meses depois do aniversário dela, serão realizadas eleições que indicarão o caminho para o futuro. Ainda não está claro se ela participará. Essa é uma das muitas questões em aberto.
O maior mérito dela é, certamente, o fato de que expôs para um público mais amplo, em seu país e no exterior, a questão do futuro de Mianmar e, possivelmente, de outros países em situações semelhantes, fazendo com que seus problemas não fossem esquecidos.
O senhor falou nas eleições presidenciais e parlamentares, a serem realizadas no fim deste ano. Que tarefa Aung San Suu Kyi deve assumir depois no cenário político de Mianmar? Segundo a lei, ela não pode ser eleita presidente, porque foi casada com um estrangeiro e os dois filhos dela são cidadãos britânicos.
De fato ela não pode ser presidente. A Constituição também não pode ser mudada a tempo. Na minha opinião, o papel dela pode ser ajudar a que, pela primeira vez na história política de Mianmar, seja alcançado um acordo entre as pessoas que até agora determinaram a política nacional. De um lado, estão os militares e, do outro, civis que saíram das fileiras militares. E também existe a chamada oposição, representada por Aung Suu Kyi. Se for obtido um acordo – que provavelmente já está sendo negociado a portas fechadas – isso já seria um grande avanço. Tal coisa nunca aconteceu na história política recente de Mianmar.
A imagem imaculada da Prêmio Nobel da Paz também sofreu arranhões nos últimos anos. O antigo papel como um ícone da liberdade tem sido trocado por Aung San Suu Kyi, desde o fim de sua prisão domiciliar, no fim de 2010, pelo papel de uma política pragmática. Por isso, ela também tem recebido uma série de críticas. Como ela lida com essa mudança?
Tenho minhas dúvidas se houve mesmo uma mudança na sua pessoa. Eu acho que a mudança está essencialmente no olho de quem vê, quer dizer, em nossos olhos. Ela foi colocada na posição de um ícone. Mas poderíamos acusá-la de não ter resistido particularmente a essa sua redução à figura de um ícone, realizada tanto aos olhos de seu povo como aos olhos do público internacional.
Desde que está na política, ela sempre insistiu que é uma política que fundou um partido. E ela agora tem de lidar com problemas da política de Mianmar que considero insolúveis a curto prazo. E, claro, com os arranhões que recebe uma imagem de um ícone, quando ela fica muito tempo pendurada na parede.
Quais são esses problemas, concretamente?
O principal foco são os problemas multiétnicos, envolvendo a questão de como pode ser possível a reconciliação entre os diferentes grupos étnicos. Os grupos étnicos reconhecidos ainda não estão totalmente prontos a fazer as pazes com o governo central. E existe, ainda, o problema da reconciliação com os muçulmanos [que não são oficialmente reconhecidos como grupo étnico]. São questões difíceis.
Ainda mais difícil é fazer funcionar uma economia liderada pelo maior grupo étnico, o dos birmaneses, sem que aconteça o que aconteceu em épocas anteriores, quando as riquezas da terra foram colhidas majoritariamente pelos estrangeiros – chineses, japoneses, coreanos, indianos ou mesmo pelos ocidentais. Este é um dos tristes legados em Mianmar. Até agora, não foi possível pacificar a maioria da população de forma que ela se sinta como a maior beneficiada pelas riquezas do país. Isso é incrivelmente difícil.
O senhor vê chances de que Aung San Suu Kyi possa fazer algo a este respeito?
Não. Nesse ponto, ela precisa de conselheiros. Acho que ela não tem muito conhecimento técnico para isso. Essa é uma das dificuldades que só podem ser resolvidas no trabalho em equipe, a partir de vários lados, e também com assistência internacional. E também há o outro problema já mostrado neste papel de ícone: o Ocidente tem pouca ideia das estruturas políticas, econômicas e afins do país. E os parceiros asiáticos não estão muito interessados em ajudar.
O senhor falou em conflitos étnicos, sobre os quais muito se discute atualmente, devido à crise de refugiados. Como o senhor classifica o silêncio de Aung San Suu Kyi sobre o tema dos rohingyas?
Ela não fica tão em silêncio assim. E o que ela diz é correto. O problema é extremamente complexo e historicamente carregado. E se você olhar para ele do ponto de vista da marca registrada dela, que é a "democracia", então, você há de reconhecer que a maioria da população budista é da opinião de que os muçulmanos em geral e os rohingyas, em especial, não fazem parte do país. De acordo com a lógica deles, eles são bengaleses e, logo, não são de Mianmar. Esta é a opinião da maioria da população. E nada mudaria se Aung San Suu Kyi dissesse: "Sim, eles são daqui."
Além do mais, se você tentar rastrear essa questão historicamente, é muito difícil se descobrir o que é verdadeiro e o que não é. É uma questão politicamente difícil. Neste aspecto, eu defendo Aung San Suu Kyi 100%. Fazer uma declaração simples sobre isso, como querem principalmente os simpatizantes dela no exterior, seria algo que não ajudaria muito.
Suu Kyi também cometeu erros políticos nos últimos anos e tomou decisões erradas?
Isso é difícil de dizer. Ela ainda não conseguiu até agora agir muito politicamente. Ela é deputada em um Parlamento em que não é possível realizar grandes debates. Seu problema é que tem que pensar suas atitudes considerando três aspectos diversos: os conceitos tradicionais de política do país, seus próprios conceitos de uma democracia influenciada pelo Ocidente e as regras constitucionais introduzidas em 2008, que ela teve que aceitar ao assumir seu mandato no Parlamento.
No Parlamento, não são pronunciados grandes discursos. São feitas perguntas e lançadas contribuições para discussão. Na nossa compreensão da política, é muito difícil fazer política no país, especialmente porque as bancadas dos partidos não possuem líderes. Aung San Suu Kyi é o membro mais proeminente de um partido que detém 34 de 440 assentos. Não dá para esperar muito disso. O que ela fez e continua fazendo é, principalmente, política simbólica. Até que ponto isso pode levar, no final, a um acordo entre ela e os políticos que, predominantemente, são originários dos meios militares e que têm as rédeas do poder nas mãos, é a grande e interessante questão, que permanece em aberto.