"Não sou vítima do racismo, sou algoz de racistas".
A frase de Vinícius Jr., no último dia 10 de junho, viralizou e se tornou uma espécie de slogan em comemoração à condenação, inédita na Espanha, de três torcedores do Valencia, que em maio de 2023 proferiram xingamentos abertamente racistas contra o jogador. Ainda que na Espanha o racismo não seja crime, a decisão aponta para uma postura que deve ser comemorada em escala global.
Mas confesso que aqui, o que continua me chamando a atenção, é a força e a consciência de Vini Jr, um dos maiores jogadores de futebol da atualidade (e quiçá, de todos os tempos), cuja genialidade em campo acabou de ser reconhecida na eleição de melhor jogador da Champions League 2023/2024.
Por um lado, Vini Jr se tornou a exceção esperada no Brasil racista: um menino negro, de origem humilde, que é um ás no futebol. Quantas histórias como essas nós conhecemos aqui no Brasil? Quantos outros meninos negros e pobres encontraram no futebol a principal, senão a única, maneira de serem reconhecidos e ascender social e economicamente?
E quantos outros meninos – e, mais recentemente, meninas – viram nessas histórias a única possibilidade de sonhar, mesmo que esse sonho não tenha sido concretizado? Afinal, para cada Vini Jr., temos milhares de jovens que sonharam e tentaram estar nesse lugar.
Acontece que sim, Vinicius Júnior é único, mas não caminha sozinho. E o seu maior encantamento não reside no fato dele ter chegado ao topo do futebol mundial, mas o caminho que o levou até lá. Uma postura que não é inédita, mas que é profundamente corajosa. Coragem que, sabemos, tem história longa.
Racismo não se curvou à genialidade dos craques
Vale lembrar que há 101 anos o Vasco da Gama quebrava os protocolos declaradamente racistas do futebol brasileiro, e entrava em campo com um time majoritariamente negro: os Camisas Negras. Mesmo com toda a torcida contra (parece que as torcidas do Flamengo, Botafogo e Fluminense se juntaram para secar o time), os Camisas Negras venceram o campeonato carioca de 1923 e anunciaram mudanças que transformariam não só o futebol brasileiro, mas o próprio país.
Basta lembrarmos que, há quatro gerações, meninos negros são podiam sequer sonhar em ser jogadores de futebol, e hoje esse deve ser o sonho mais sonhado por esses mesmos meninos (e talvez o mais possível de se tornar real).
Em 100 anos, o Brasil e o mundo tiveram que se curvar à genialidade do futebol jogado por meninos negros. O que não significa que o racismo tenha diminuído nessa modalidade esportiva.
Nem mesmo o rei Pelé, esteve imune às barreiras colocadas pelo racismo, tendo sido recusado em alguns clubes por ser um jovem negro que jogava futebol. E à medida que nosso futebol de engrandecia e se enegrecia, o racismo foi encontrando outras formas de dar seus dribles.
As estratégias criadas pelos jogadores negros foram diversas e dizem muito da época em que viveram. Alguns preferiram "comprovar em campo" a sua genialidade e calar seus detratores. Outros caíram no conto da democracia racial, e preferiram não tomar partido (ou demorar muito para se entenderem ou se assumirem publicamente como jogadores negros).
Mas também tivemos aqueles que, além de bater bola como poucos, resolveram denunciar o racismo. Grafite, Marinho e Aranha são alguns nomes de importantes jogadores negros que resolveram lidar com o racismo como ele é: um crime. Que deve ser tomado como tal, passando por todas as tratativas jurídicas cabíveis.
É dessa "escola" que Vinicius Júnior faz parte. E essa é, sem dúvida, uma das suas maiores qualidades.
Espero que mais do que jogar tanta bola quanto Vini Jr., os meninos e meninas negros do Brasil também possam e queiram se tornar os algozes dos racistas. Porque é desse tipo de carrasco de que o Brasil precisa.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.