Arquivamento do processo contra Manuel Vicente?
27 de setembro de 2017Dias antes de deixar Lisboa com destino a Luanda para a tomada de posse do terceiro Presidente de Angola, o chefe de Estado português, Marcelo Rebelo de Sousa, tratou de amenizar o clima de tensão política nas relações entre os dois países. "É uma reafirmação dos sentimentos que vão no coração dos portugueses relativamente ao povo angolano. E também a reafirmação daquilo que é a fraternidade não só entre os dois povos, mas também entre os dois Estados", disse Rebelo de Sousa na ocasião.
A investigação por parte da justiça portuguesa de altas figuras da elite angolana, entre as quais o ex-vice Presidente Manuel Vicente, fez as relações piorarem nos últimos dois anos.
Já em Luanda, na véspera do ato que legitimou João Lourenço (26.09.), o Presidente português desvalorizou as dúvidas sobre o estado das relações entre Portugal e Angola. Rebelo de Sousa destacou a "aproximação entre Portugal e Angola fomentada por José Eduardo dos Santos ao longo de 38 anos como chefe de Estado angolano, mesmo com divergências pontuais".
A propósito dos referidos processos judiciais, o primeiro-ministro português, António Costa, também foi politicamente cauteloso quando abordado pela DW África, ao afirmar que nunca foram suspensas as relações entre os dois países. "Têm decorrido com normalidade e, portanto, só creio que há boas razões para, de uma parte e de outra, intensificarmos as relações", declarou Costa.
Processo avança depois da posse?
Mas, a pergunta que se coloca é se, depois da tomada de posse de João Lourenço, haverá luz verde para se avançar com o processo judicial contra o ex-presidente da Sonangol, acusado pela justiça portuguesa dos crimes de corrupção e branqueamento de capitais.
O jurista português Rui Verde defende que "na interpretação que faço da Constituição e da lei, basta acionar o artigo 150 número 3. Isto é, a Assembleia Nacional pode levantar imunidade ao antigo vice-Presidente e ele pode ser julgado."
Não se sabe, entretanto, se Manuel Vicente comparecerá ou não ao julgamento, advoga o professor de Direito em Inglaterra que diz que se trata de "uma questão meramente de decisão política". Para o jurista, "já não se podem escudar nas imunidades constitucionais nem nas soberanias internacionais nem nada. Qualquer deputado tem imunidade a não ser que a Assembleia Nacional lhe retire. E de um modo geral, a Assembleia deve retirar a imunidade aos deputados quando são acusados de crime", completou.No entanto, Rui Verde já vislumbrava outro cenário, ao referir que "a solução foi cozinhada há muito tempo" pelos poderes de Luanda e Lisboa. "A solução é muito simples. É fazer o julgamento de Manuel Vicente em Angola e assim salva a face da justiça portuguesa e depois de se transferir o julgamento do ex-presidente da Sonangol para Angola descobre-se que os crimes que ele terá cometido já foram amnistiados e o julgamento é arquivado", sustenta o jurista. Verde acredita que "esta é a solução que, há muito tempo, está nas gavetas das diplomacias portuguesa e angolana."
Ministério Público
O advogado defende que Manuel Vicente tem dos melhores advogados portugueses e considera que "o Ministério Público, provavelmente, como se costuma dizer, nem sentirá as costas quentes para insistir" contra o ex-vice-Presidente de Angola, "uma vez que o poder político português tem medo deste processo como já se viu".
Apesar de um certo mal-estar entre Luanda e Lisboa, Rui Verde não acredita que com João Lourenço se inicie uma nova era nas relações entre Portugal e Angola. "As relações entre os dois países têm sido relações de negócios e que já perduram pelo menos desde o início dos anos 2000. Só haverá uma nova era nas relações entre os dois países quando Portugal também estabelecer relações, digamos assim, com a oposição e a sociedade civil e perceber que as relações com Angola não se podem conduzir apenas e só a nível de Estado", comenta o jurista.Por sua vez, o juiz luso-angolano, Rui Rangel, fala de "ruídos" que podem ser prejudiciais e sustenta que as relações entre os dois países têm que ser trabalhadas com muita ponderação, porque há muitos interesses em jogo. Quanto ao arquivamento dos processos, diz que "temos uma noção errada das investigações. Normalmente olha-se sempre para o arquivamento com alguma desconfiança. É preciso que se perceba isso. É tão digna a acusação como é digno o arquivamento". Rangel alega querer acreditar "apesar das críticas todas que existem ao funcionamento do sistema de justiça, que os arquivamentos derivam, de fato, do ponto de vista de não terem resultados indícios."
Futuro da relações
As palavras do Presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa, proferidas em Luanda, visam ajudar a afastar a ideia de que, no futuro, os dois países podem ficar para sempre de costas voltadas. Observadores consideram que o chefe de Estado português está numa posição favorável para melhorar as relações com Angola, pela amizade que tem com dois professores catedráticos de Direito angolanos, doutorados na Universidade de Coimbra. Um deles é candidato a ministro da Justiça no Governo de João Lourenço e o outro deverá chefiar o Supremo Tribunal da Justiça. Essa "ligação", segundo o analista da SIC, Miguel Sousa Tavares, "pode ajudar a desbloquear algumas das questões pendentes entre Portugal e Angola."
UNITA critica
Dias antes do ato de tomada de posse de João Lourenço, surgiram críticas por parte da UNITA, principal partido da oposição, à postura de Portugal em relação a Angola. Em entrevista a um canal privado da televisão portuguesa, o vice-presidente do Partido do Galo Negro, Raúl Danda, acusou Portugal de se vergar ao regime de Luanda, afirmando que, por uma questão de dignidade, é preciso olhar (um para o outro) de igual para igual. Danda afirmou que se surge um órgão de comunicação social a falar de uma alta figura na hierarquia do MPLA, "eles depois zangam-se dizendo que não queremos mais as relações com Portugal". "E Portugal verga", reforçou Danda.
O vice-presidente da UNITA disse que "Portugal passou de país colonizador a um Estado de submissão porque cede perante a ameaça de Angola do corte de relações bilaterais por notícias que não agradam ao regime". E uma das notícias que não agradou ao regime de José Eduardo dos Santos foi sobre altas figuras da elite angolana, a exemplo de Manuel Vicente, investigado pela justiça portuguesa por envolvimento em crimes de corrupção e branqueamento de capitais.