Episódios e controvérsias da "novela" das dívidas ocultas
8 de dezembro de 2022Começou a 23 de agosto de 2021 o julgamento do maior escândalo financeiro da história de Moçambique, que envolveu 19 réus e mais de 60 declarantes.
Mais de um ano depois, foi conhecida ontem a sentença dos arguidos, acusados de crimes de branqueamento de capitais, associação para delinquir, peculato, falsificação de documentos e abuso de cargo ou função. 11 dos 19 arguidos foram condenados a penas que variam entre os 10 e 12 anos de prisão.
O juiz Efigénio Baptista deu como provado que Ndambi Guebuza, filho do ex-Presidente Armando Guebuza, e os dois antigos responsáveis dos serviços secretos moçambicanos Gregório Leão e António Carlos do Rosário foram os cabecilhas deste crime, que lesou o país em mais de 2,2 mil milhões de dólares.
1. Intervenções marcantes
As audiências do julgamento das "dívidas ocultas" ficaram marcadas pela ocorrência de intervenções "incomuns".
O réu António Carlos do Rosário e o juiz da causa, Efigénio Baptista, foram os protagonistas de uma delas.
"O senhor ainda quer falar de Direito? Não, não. Desculpe, meritíssimo. Se o senhor quer ser respeitado, respeite", afirmou, em tribunal, António Carlos do Rosário. "O facto de ser juiz não lhe dá o direito de faltar com o respeito às pessoas. Nós somos da mesma idade. Se o senhor foi o melhor estudante de Direito, não venha aqui insultar as pessoas", declarou.
Para a ativista Fátima Mimbire, a atitude do réu deve-se ao facto dele estar habituado a subordinar-se apenas ao Presidente da República: "Ficou muito claro que, sendo uma pessoa que só se relacionava com o Presidente da República, essas pessoas não respeitam as instituições. Ele não está acostumado a estar numa posição em que não manda".
O julgamento da "novela" das "dívidas ocultas", acompanhada religiosamente por muitos moçambicanos, na televisão, também teve momentos de humor. Desta feita, protagonizados pelo réu Fabião Mabunda e pelo juiz Efigénio Baptista.
"Mas o senhor sabe o que é roubar e o que é perder o telefone?", questionou a magistrada do Ministério Público Ana Sheila Marrengula.
"Eu não sei se perdi ou se foi um furto ou um roubo, eu estava piff [sob efeito do álcool]", respondeu o réu.
2. Personalidades citadas
Durante as audições, os réus António Carlos do Rosário e Gregório Leão citaram os nomes do antigo Presidente da República Armando Guebuza e do antigo Ministro da Defesa e atual Presidente Filipe Nyusi como estando implicados no escândalo financeiro, tendo o juiz questionado:
"Quem sabia era o Ministro da Defesa, o atual Presidente Filipe Jacinto Nyusi, é isso que está a dizer?"
"Não é difícil perceber isso", respondeu o réu António Carlos do Rosário.
"Não estou a dizer que é difícil", disse o juiz.
"Parece que é difícil, parece que há um esforço ... Eu não estou aqui para defender quem quer que seja, nem quero incriminar ninguém", acrescentou António Carlos do Rosário.
A procuradora Ana Sheila Marrengula questionou os réus sobre as garantias do Estado.
"O réu veio afirmar que foi o então Ministro da Defesa. Tem alguma prova que sustenta a sua alegação?"
"Eu peço ao meu advogado para juntar aos autos a carta do então ministro das Finanças, [Manuel Chang], indicando que foi identificado o Credit Suisse, que solicita a emissão de garantias".
A sociedade civil exigiu, por sua vez, que Armando Guebuza e Filipe Nyusi fossem a tribunal. À DW, o analista Dércio Alfazema lembra que, da parte do ex-chefe de Estado, houve abertura para isso.
"O Presidente Guebuza mostrou algum interesse em sede do tribunal, para poder tecer alguns esclarecimentos à volta das poeiras que existiam", disse.
E perante a pressão para investigar o envolvimento destas duas altas figuras na contratatação das "dívidas ocultas", o tribunal veio a público dissipar as dúvidas: "O Presidente Guebuza, a sua mulher e todos os outros têm as suas contas. Nos extratos das suas contas não consta recebimento de dinheiro do grupo Privinvest [acusado do pagamento de subornos]. O Presidente Nyusi idem, não tem nada".
3. Mas onde está o dinheiro?
É o que questiona o diretor do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD), Adriano Nuvunga, que diz ser urgente a recuperação dos ativos mencionados no escândalo.
"Se nós não recuperarmos os ativos deste calote macabro, vamos ter má-nutrição crónica dos nossos filhos. Moçambique pode colapsar. Vamo-nos organizar para irmos atrás deste dinheiro", assegurou.