Madeira: "ninho de corrupção e viveiro do crime organizado"
25 de fevereiro de 2017"O offshore da Madeira é um sistema que não é escrutinado por ninguém. As autoridades locais fecham os olhos e convidam as máfias para alí lavarem dinheiro a céu aberto". A afirmação é do economista João Pedro Martins, autor do livro "SUITE 605", que conta a história secreta de centenas de empresas que cabem numa sala de 100 m², no offshore da principal ilha do arquipélago português.
O perito na área da fiscalidade tributária reage deste modo à recente investigação publicada pela Bayerischer Rundfunk (BR), rádio televisão pública do Estado federado alemão da Baviera, sobre as consequências do sistema fiscal da Madeira para a economia da ilha.
Na investigação também é citado o nome da Isabel dos Santos, filha do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, e presidente do Conselho da Administração da petrolífera angolana (Sonangol), cujas empresas têm tentáculos naquela região autónoma de Portugal.
Geografia da corrupção
A Madeira "é um puro ninho de corrupção, um viveiro do crime organizado", afirma João Pedro Martins, para quem a principal ilha do arquipélago, situado no oceano Atlântico, funciona como uma espécie de "bordel tributário para as multinacionais não pagarem impostos".
Segundo o perito português, "o caso (dos negócios) de Isabel dos Santos funciona não só para isso – como com a Sonangol". O econosmista explica que "a Sonangol aqui tem uma diferença; é que tem duas empresas – a Sonaserge e a Sonaserve. Não tem o problema de fuga aos impostos, porque é uma empresa com capital cem por cento do Estado angolano. Tem depois outras questões que são de lavagem de dinheiro".
O autor do livro "SUITE 605" sobre o paraíso fiscal da Madeira adianta que a filha de José Eduardo dos Santos usa para tal a Niara Holding, uma empresa fantasma incorporada na ilha, criada inicialmente com capital social de 6 mil euros.
"É através desta empresa sediada no offshore da Madeira que vai controlar o conglomerado de empresas que estão em Malta e que por sua vez vem colonizar Portugal a nível financeiro. Portanto, Isabel dos Santos detém neste momento uma percentagem significativa de ações em diferentes bancos portugueses, domina a área das telecomunicações e, portanto, o que nós estamos a assistir é uma colonização de dinheiro sujo que está a invadir a nossa economia e que está a estrangular setores vitais de Portugal".
Elite corrupta
Pedro Martins acrescenta que a ligação de empresas de Isabel dos Santos ao offshore da Madeira tem fins perversos, enquanto "os senhores da guerra que estão no poder (em Angola) privam a população local de direitos básicos como a alimentação, a saúde e a educação". O econimista ressalta que "Angola tem petróleo, tem diamantes e tem ouro, mas está nas mãos de uma elite corrupta".
Por sua vez, o diretor executivo da Transparência e Integridade – Ação Cívica (TIAC), João Paulo Batalha, considera que "há uma promiscuidade enorme entre o fisco, o Governo regional (da Madeira) e o Centro Internacional de Negócios", o que ajudaria a explicar a facilidade com que Isabel dos Santos, Sindika Dokolo, a Sonangol, entre outros, lá abrem empresas offshore, sem quaisquer controlos ou verificações sobre a origem dos capitais investidos e os riscos de branqueamento de capitais inerentes.
"E isto está a acontecer com a cumplicidade objetiva das autoridades da Madeira e com o silêncio das autoridades nacionais", afirma João Paulo Batalha.
Rede de interesses
Para o dirigente da organização não-governamental, este é mais um indício que mostra que há uma rede entre Portugal e Angola, com ramificações noutras jurisdições onde também há offshores ligadas a altas figuras do Estado angolano por onde passam negócios – depois com implicações em ambos os países.
Esta rede não está desmascarada na acusação do Ministério Público português a Manuel Vicente (ex-presidente da Sonangol). Mas, refere, ela indicia que há comportamentos e teias de interesse muito mais profundos que precisam de continuar a ser investigados pela justiça portuguesa.
João Paulo Batalha chama atenção para o fato de a Madeira ter um Produto Interno Bruto (PIB) que não condiz com a realidade vivida na ilha. "É um PIB muito inflacionado pelos lucros que são reportados pelas empresas do offshore da Madeira, mas esses lucros não são verdadeiramente investidos lá. Quando se vai àquela região, vê-se a forma como as pessoas vivem. A Madeira continua a ser uma das regiões mais deprimidas, com mais pobreza, com mais desigualdade, e torna-se absolutamente evidente que o Centro de Negócios não só não contribuiu para aliviar essa pobreza, como está a contribuir para alargar essa desigualdade", denuncia.
O economista João Pedro Martins também sublinha que os auxílios estatais a tais negócios ilícitos não têm contribuído para a criação de emprego e desenvolvimento regional, acrescentando que a Madeira é o único offshore do mundo em que um único privado usufruiu dos tributos da coletividade.
Um passo contra a corrupção
Pedro Martins considera que a justiça portuguesa deu um passo significativo ao acusar Manuel Vicente, que foi durante muito tempo o "homem forte" da Sonangol – empresa do Estado angolano com capital em várias empresas em Portugal.
"E atrás de Manuel Vicente há depois um manto de pessoas e de operações que interessa eventualmente mapear. Ele está acusado, não está obviamente condenado, mas sabemos também que nestas questões não há fumo sem fogo e há uma base sustentável por parte da acusação", diz.
Além disso, o autor do livro "SUITE 605" chama tenção apara a concentração de capitais em Angola. "O que nós temos aqui é uma petrolífera estatal que neste momento tem Manuel Vicente como vice-presidente de Angola, mas que tem a filha do Presidente [José Eduardo dos Santos] como a presidente do Conselho de Administração da Sonangol. E parece-me que Angola é demasiado grande para o poder e o dinheiro ficar concentrado na mão de tão poucas pessoas".
A DW África falou com os peritos à margem de uma conferência, realizada na última sexta-feira (24.02), em Lisboa, para a apresentação de um relatório sobre "Beneficiários Efetivos e Transparência Fiscal”, que contou com os contributos de Orlando Mascarenhas, do Gabinete de Recuperação de Ativos na Polícia Judiciária, e da eurodeputada, Ana Gomes, que integra o Intergrupo do Parlamento Europeu sobre Integridade, Transparência e Crime Organizado.
Os participantes defendem que o combate a este flagelo de fluxos financeiros ilícitos deve contar com a cooperação internacional, envolvendo entidades públicas e privadas, bem como a sociedade civil.