África poderia alimentar-se de forma autónoma
17 de junho de 2022A invasão russa da Ucrânia, que começou em fevereiro de 2022, rapidamente teve consequências para África: o fornecimento de cereais e outros produtos agrícolas caiu subitamente, revelando como grande parte do continente africano continua dependente de importações.
Segundo Sara Mbago-Bhunu, diretora da divisão da África Oriental e Austral no Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola da ONU, os mais pobres são os mais afetados.
"O conflito na Ucrânia, mas também a pandemia de Covid-19, mostraram que os nossos sistemas alimentares não funcionam para os mais pobres e não respondem às necessidades alimentares nem aos requisitos de produção", alerta.
Pandemia reduziu poder de compra
Antes mesmo da guerra na Ucrânia, a pandemia do coronavírus já tinha reduzido de forma significativa o poder de compra das famílias. "Com os constrangimentos da Covid-19, os custos e preços dos alimentos triplicaram em todo o continente. Cerca de 60 a 70% dos rendimentos foram gastos em alimentos", frisa a especialista.
"E isto reduz imediatamente uma família de cinco ou seis pessoas à insegurança alimentar. Têm de escolher o que podem pagar, provavelmente alimentos mais baratos e menos nutritivos", acrescenta.
De acordo com Sara Mbago-Bhunu, muitos países africanos têm potencial para se tornarem exportadores de alimentos. A responsável do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola cita como exemplos a República Democrática do Congo, a Zâmbia e o Malawi. Dada a quantidade de terrenos aráveis, poderiam produzir mais do que o suficiente para cobrir as necessidades de consumo interno.
África já cultiva cereais como o painço e o sorgo, bem como uma grande variedade de frutas e legumes. A criação de gado também oferece grandes possibilidades de produção de carne e laticínios em grande escala. No entanto, os hábitos alimentares perpetuam uma dependência dos produtos importados, tais como o trigo para fazer pão.
Por outro lado, os métodos de cultivo como o corte e queima têm contribuído para o empobrecimento do solo, e a desertificação aumenta. Proteger os reservatórios de água e utilizar técnicas como a irrigação gota a gota é urgente para melhorar o rendimento por hectare, defendem os especialistas.
Várias carências
Quem conhece a realidade em África alerta que falta mão de obra para as colheitas, com os jovens a preferir cada vez mais os centros urbanos. Por outro lado, há enormes dificuldades no transporte dos produtos.
"Se for para o Sudão, demoro 13 ou 14 horas. Se for para a Europa, em 6 horas estou lá. Nós queremos fornecer as sub-regiões, mas há desafios. Pode causar surpresa descobrir que o transporte aéreo do Gana para os países vizinhos é mais caro do que ir para a Europa", afirma Kamassah Felix Mawuli, diretor de uma empresa agrícola do Gana.
O Acordo de Comércio Livre Africano, lançado oficialmente em 2019, não teve ainda grandes efeitos, e será necessário um enorme desenvolvimento das infraestruturas para evitar que as mercadorias se estraguem a caminho dos mercados regionais.
Ainda há muito trabalho pela frente para tornar a produção africana competitiva, diz Francisco Marí, especialista da organização não-governamental alemã "Brot für die Welt" (Pão para o Mundo). Segundo este ativista, é preciso reforçar a resiliência dos pequenos agricultores, em particular, face às alterações climáticas, e melhorar o fornecimento de energia e o acesso de agricultores e comerciantes a tecnologias inovadoras.
"Ficaríamos felizes se o mundo permitisse que África se alimentasse a si própria, aproveitasse a grande diversidade e oportunidades de produção alimentar e tivesse mercados locais abastecidos por produtores africanos, especialmente as grandes cidades", comenta.
"Ficaríamos felizes se estes mercados não fossem perturbados por importações em massa, como acontece há décadas", conclui.